Depois que Camila me comparou com
o pai dela – debaixo do toldo verde do nosso restaurante favorito, ela limpando
o canto da boca com a unha de um dedo esmaltado de verde (ou era a luz
esverdeada do toldo que deu essa impressão?), sendo que ela nunca fazia esse
gesto, nunca ela foi assim de uma delicadeza tão sutil e ardilosa, muitas vezes
eu vi os seus guardanapos repletos de manchas de batom, amarrotados sobre a mesa,
eu acho que aquele gesto incomum dela antecipou que aquele almoço não ia
terminar bem – depois que ela me disse que eu estava apegado demais em coisas
que deviam ficar no passado e que isso estava me recalcando e me deixando
agressivo, exatamente como o pai dela era, eu nunca mais consegui olhar para
uma mulher que eu desejasse sem levar em consideração que certamente não valia
a pena começar algo cujo final já estava estampado em caracteres tristes e
sombrios nas suas caras.
Clara, por exemplo, cumpre
integralmente os requisitos da promessa de felicidade que sua beleza
deslumbrante espalha pelo ar, mas não é difícil prever que um relacionamento
com ela vá terminar ali adiante, de forma melancólica ou bélica, e que isso é
tanto mais provável quanto maior for o esforço de cada um para que isso não
aconteça. É o que a experiência tem me ensinado, é o que eu comecei a perceber
assim que saí de baixo daquele toldo verde, me sentindo ressentido, barrigudo e
intolerante como o pai de Camila.
Depois que o sujeito acumula uma
certa carga de derrotas, acontece o surpreendente espetáculo da parábola do
homem que não tem nada a perder. Percebe-se que nada vale a pena, e portanto
tudo está disponível de forma imediata e inconsequente. A partir de então,
qualquer vida que passe diante do sujeito parece ser mais interessante do que a
sua própria, e não demora para que ele fique novamente enredado nas malhas das
misérias e dos triunfos da existência sobre a Terra. E aí começa tudo de novo,
como se nunca tivéssemos aprendido nada. Cometem-se os mesmo erros, e
alimentam-se as mesmas expectativas. Põe-se tudo a perder, novamente.
Conheci Clara na Marcha das
Vadias. Todo aquele bando de mulheres, umas pintadas, outras seminuas, fazendo
uma barulheira dos diabos, e eu só queria tomar meu chimarrão em paz na praça.
Ela veio e sentou-se ao meu lado no banco pra ajeitar a sandália que estava
escapando do pé. Viu que eu usava uma camiseta com a estampa da Amy Winehouse e
puxou assunto, com o corpo curvado, ainda debruçada sobre a sandália. Lamentou
a morte da Amy, mas disse que muito maior havia sido a perda de Mercedes Sosa,
e emendou alguma coisa sobre a força dos povos latino-americanos e mais alguma
coisa que eu não lembro bem, sobre opressão e resistência. Me pareceu que era
lésbica, mas não pude deixar de desejar ardentemente colocar todos os meus dez,
não!, meus vinte dedos e mais alguma coisa naquela carne latina e politizada.
Depois que ela afastou o cabelo do rosto eu pude perceber que, a despeito de
todos os prognósticos contrários, era possível que eu ficasse apaixonado por
aquela criatura de olhar tão vívido.
Ela liga a TV e senta toda
estirada no sofá com aquele livro que fala do tal sujeito pós-freudiano, lê uns
trechos em voz alta pra mim e fica me provocando com as questões que o autor
coloca, de fundamental importância para o curso de graduação dela, e também, conforme
ela me explica, para a compreensão do mundo atual. Às vezes eu presto mais
atenção na TV.
- A novidade na condição do
sujeito pós-freudiano é que ele não tá mais pautado pelos grandes valores da
autoridade, entende? Os grandes vetores verticais de autoridade foram
substituídos pelas relações horizontais.
- Para Dona Jucélia, a atividade de criação de borboletas em cativeiro
não é apenas uma fonte de renda, mas uma terapia.
- Estamos assistindo ao final da
situação orientada em torno da autoridade paterna, sabe como é, que pautou os
indivíduos até aqui. Não se trata mais de decifrar os recalques, entende, mas
de cifrar a sua individualidade. Assumir o seu próprio caos, como um poeta de
si mesmo, libertado pela rede de relações horizontais, livre para o gozo.
- Desde que eu passei a ter um borboletário em casa eu me sinto muito
melhor, acabou a depressão, acabou com meu nervoso. Quando tem algo pra cuidar
assim, com dedicação e atenção, o dia fica preenchido e não se tem nem tempo de
pensar em bobagem, né?
As duas sorriem ao mesmo tempo. Clara
e Dona Jucélia. Me dá uma vontade de dizer pra elas que eu me sinto uma diagonal
em pleno cruzamento. Levanto pra ir até a geladeira pensando que talvez ninguém
ainda tenha pensado em manter relações diagonais. Abrindo a garrafa, ainda
consigo ouvir a voz da Clara, mas a TV não. Já não sei se ela está lendo o
livro ou simplesmente despejando sobre mim tudo o que passa pela sua cabeça.
- Ao contrário do que se pensa –
continua Clara lá da sala – as pessoas atualmente não estão assim tão
desorientadas, tão perdidas, tão entregues ao acaso, como querem fazer crer
essas religiões todas e os discursos conservadores e os diagnósticos psiquiatrizantes.
Ainda na cozinha, por um instante
minha consciência é chamada a observar a cor esverdeada do vidro da garrafa; de
súbito, o verde insinua-se pela parte de trás dos meus olhos, invade meu
cérebro, percorrendo minha espinha e me deixando abandonado às minhas próprias reminiscências.
Quase uma epifania, vejo o verde do toldo, o verde das unhas, o verde da
garrafa, vejo tudo esverdeado e pressinto o fantasma daquele gesto de limpar o
canto da boca com a unha. Sinto a angustiante certeza de que está tudo para
acabar, muito em breve, agora mesmo.
- É só pensar nesses jovens que
se expressam com tanta intensidade através de esportes radicais, de música
eletrônica, de grafismos incríveis. No passado, na geração dos nossos pais, por
exemplo, a inconformidade da juventude era agressiva, botar fogo em prédio,
quebrar o pau com a polícia, destruir qualquer coisa. Concentravam seus esforços
de revolta contra o controle, enquanto o sujeito pós-freudiano centra-se no
autocontrole.
Talvez Camila tivesse razão. É
possível que eu nunca tenha superado a morte trágica dos meus sonhos. Apanho a
garrafa e volto pra sala, decidido a finalmente dizer o que estava entalado há
meses:
- Escuta,
sabe o que eu acho? Sabe o que eu realmente penso? – ela ergue os olhos do
livro e me ouve – Pra mim Mercedes Sosa é igual à Amy Winehouse. Ou Billie
Holiday, ou quem sabe Janis, ou Elis. Não vejo diferença essencial. São
artistas fantásticas, insuperáveis, que nos levam o mais longe possível com sua
música. Não preciso entender o que elas cantam, não preciso me preocupar se uma
é ativista social, a outra uma junkie, ou maníaco-depressiva, ou suicida. Parem
de sempre associar Mercedes Sosa com ativismo latino-americano, como se ela
precisasse disso para se justificar! Basta sua voz e sua arte, não preciso de
nota de rodapé pra valorizar uma artista desse calibre! Graças a la vida, sei
viver a arte de Mercedes Sosa com a mesma entrega e a mesma energia com que
vivo Amy Winehouse! Será que os tais povos latino-americanos podem se permitir
ao menos essa alegria?! Hein?!
Talvez
eu tenha finalmente aprendido alguma coisa, com todos aqueles cacos verdes
espalhados pelo chão, como borboletas mortas, e os soluços de choro da Clara.
Eu apenas começo a me conhecer, recém vão desabrochando minhas facetas, principio
a me fascinar com as minhas metamorfoses, descobrindo que meu poder de ser eu
mesmo é múltiplo e fantástico – quando então sou forçado a perceber que é
preciso sufocar pelo menos uma das minhas facetas a fim de realizar qualquer
coisa duradoura. Tenho de admitir, resignado, que é necessário restringir a mim
mesmo para não ficar completamente entregue àquela espécie de tentação
desnorteadora que me leva à deriva pelos dias e noites. Fico pensando no que é
que a Dona Jucélia vai fazer da vida quando se cansar das borboletas.
Espanha, 1998 - Harry Gruyaert |