sexta-feira, 23 de março de 2012

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UMA VERDADE INCONVENIENTE


A filha do meu advogado interrompeu nossa conversa pra dizer que o urso polar na verdade não é branco, ele é pardo como um urso qualquer, mas o reflexo do sol no gelo faz com que seu pelo pareça branco a nossos olhos, sabia pai? Um pouco aborrecido com a intromissão olhei para o meu advogado, mas ele parecia simplesmente ignorar a vozinha insistente da filha. Vem cá Fonseca, tu não acha que ela tá olhando televisão demais, perguntei, que tipo de criança usa a palavra pardo em seu vocabulário, pensei comigo, sem coragem de admitir que crianças hiperativas me deixam em pânico, e pensando que talvez o mundo realmente acabe quando finalmente todos os jovens forem hiperativos. Ele pousou o copo sobre a mesa e disse que esse tipo de coisa ela aprende na internet. A internet é um tédio só, na minha opinião, e seria bom que a gurizada arranjasse coisa melhor pra fazer; mas eu não disse isso, me limitei a lançar um olhar esfaimado para a garçonete, tentando imaginar qual a idade dela e se ela acessaria a internet, talvez tivesse um caso virtual. O urso polar pode farejar uma foca a trinta e dois quilômetros de distância, sabia pai?

É impressionante a força do instinto de sobrevivência, e a capacidade de adaptação que a vida encontra.

Está completando três semanas desde o dia em que bisbilhotei o lixo da minha vizinha. Foi num impulso, difícil explicar, saí do elevador e me deparei com aquela sacola cheia de lixo na soleira da porta dela. Peguei em silêncio e entrei logo na minha porta, estimulado por uma ânsia incompreensível e sorrateira. Agora eu percebo, era apenas uma forma lúdica e segura de perversão. Nem tão segura, na verdade.

Lixo seco. A única coisa interessante que encontrei foi um batom, um toco de batom vermelho. Girei a base, cheirei, aroma adocicado, passei na boca, tava excitado mesmo, passei nas bochechas, na testa, difícil explicar. Minha vizinha é solteira, tem um corpo esguio e pernas longas, deve ter pouco mais do que metade da minha idade. Bis, Doritos, Heineken, Activia. Eu esperava uma embalagem de Ritalina, mas só tinha de clareador dental e sabonete líquido. Nenhuma pista sobre a vida sexual, afetiva ou profissional dela. O que ela fazia nessa vida, além de ouvir Amy Winehouse no último volume, fumar os seus baseadinhos fedorentos e sair no sábado à noite batendo a porta com estrondo? O que ela estaria fazendo nesse exato momento para não ser consumida pelo tédio, em casa?

Eu volto a explicar pro Fonseca que não sei mentir direito, que eles vão perceber meus sinais de nervosismo, que é melhor ele pensar em outra estratégia, talvez seja melhor dizer a verdade. A filha dele já desistiu de atrair nossa atenção e agora fala sozinha, trepada na cadeira, passando o dedo na parede como se fizesse desenhos imaginários. Ele me diz que todos os fatos podem ser explicados, basta encontrar uma sequencia lógica coerente, e usa a evolução dos ursos polares como exemplo. Cara de pau, será que ele tá falando sério? Será que ele não percebe que a filha hiperativa dele vai virar uma acadêmica bem sucedida na carreira mas cheia de compulsões destrutivas? Ele não percebe que a falta de imaginação vai acabar nos derrotando, a todos nós?

Alguém bateu na minha porta quando eu acabava de verificar o último item da sacola. Escondi tudo rapidamente embaixo da mesa e abri. Era ela. Lembro bem da expressão confusa no seu rosto. Ela deu uma vacilada, depois os olhos brilharam, isso é batom na tua cara?

É impressionante como o nosso instinto de sobrevivência fraqueja às vezes, contrariando toda teoria. Talvez a história da humanidade não seja mais do que a crônica da inadaptação, do crescente constrangimento ao longo do tempo, do processo gradual de sair da caverna sem realmente abandonar o útero.

Eu não sei mentir direito, fiquei nervoso, ela só queria saber se eu podia emprestar o controle remoto do portão da garagem, nem se lembrava do lixo, mas contei a verdade, confessei envergonhado, confiando na compreensão dela, afinal era só um lixo.

Faz três semanas que ela deu queixa na delegacia, danos morais ou invasão de privacidade ou coisa assim, fui intimado, contatei meu advogado, etc.

Eu sinto que, apesar de tudo, devo dizer a verdade, mas, por artimanhas da vida, não sei ao certo qual é a verdade. Ursos polares, aquecimento global, evolução biológica, justiça.  A sistemática insistência dos cientistas e acadêmicos em afirmar que a ciência opera com provas e não com crenças é, evidentemente, uma prova de que essa é a crença deles.

A filha do Fonseca me dá uma última olhada, zombeteira, quando eles se levantam para ir embora. A garçonete vem recolher os copos, passa o pano na mesa, o senhor deseja mais alguma coisa? Sim, eu desejo, desejo muito, desejo de verdade, desejo a tua boca cheia de batom vermelho, a tua boca aberta e quente; mas eu não disse isso, embora fosse verdade. Escrevi no guardanapo uma frase do Fonseca que deixei à mostra sobre a mesa, esperando por uma reação dela: "O que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita".


Difícil explicar, difícil acreditar na explicação. Todas elas - a filha do Fonseca, a minha vizinha, a garçonete, todas - me olham com essa cara de quem sabe a resposta, e eu respondo com o olhar de quem já desistiu do jogo, de quem não separa o lixo, de quem não tem perfil nas redes sociais.

Talvez a raça humana termine por pura falta de imaginação.

Já imaginou?

O diretor de cinema Abbas Kiarostami procurando a verdade nos arredores de Teerã

sábado, 10 de março de 2012

ESQUECER OS MORTOS

Acho que minha filha devia adotar outro estilo, parar de usar sempre All Star. Não é um tênis feio, mas fico incomodado quando noto algo em comum entre colegiais, anarquistas, empresários, intelectuais, ripongos, metidos, bundões, lésbicas, playboys, baderneiros, saudosistas e desocupados – do Eike Batista ao Lobão, todo mundo usa All Star. Essa união de forças tão díspares em torno de um interesse comum é que faz com que eu me sinta ameaçado. Prevejo exércitos inteiros perfilados, alinhados a partir daquele bico emborrachado branco.

- Talvez tu devesse ser menos resistente à moda – me disse a mãe da minha filha. Já minha namorada teve uma postura diferente, disse que eu sempre arranjava um motivo para implicar com minha filha e que eu dava importância demais a coisas sem importância. Não sei se ela se referia à minha filha ou ao All Star.

Ontem eu quase conversei sobre isso com a minha filha, quando fui buscá-la da aula de inglês. Eu queria mesmo ver a reação dela, o quão imatura, o quão feminina, o quão insegura seria. O que me fez desistir do assunto foi uma lembrança da minha juventude que me assaltou enquanto eu a aguardava na calçada. Na verdade foi o cheiro que exalava a casa abandonada que fica bem ao lado do prédio do cursinho de inglês. Era um odor de coisa velha, que me fez desencostar das grades e torcer o meu corpo em direção à casa, para observá-la. Os capins entre as lajotas do pátio, os detritos pelo chão, o lixo na soleira da porta, as manchas de umidade, as frestas apodrecidas, tudo aquilo desprendia um aroma de velharia inútil, de derrota, de impotência, de final sem glória. Era o mesmo cheiro que tinham os objetos do meu tio, quando ele morreu, décadas atrás, e a casa ficou vazia e fechada até que fôssemos lá recolher os espólios aos quais os vivos têm direito; depois de alguns dias completamente inativa, a casa mais parecia um grande sepulcro repleto de objetos mortos. Fiquei horas inteiras sozinho no quarto dele, mexendo nas gavetas. Eu até hoje não sei ao certo do que meu tio vivia, mas ele gostava muito de pintar, desenhar, ilustrar – tinha coleções inteiras de pincéis, lápis de cor, giz de cera, tintas, folhas de papel, grafites, canetas, gabaritos, réguas e todo um microuniverso de objetos que, apesar de decadentes e opacos, agradavam meus dedos e olhos.

Foi só ontem, esperando minha filha diante daquela casa abandonada, que percebi que aquilo tudo tinha um cheiro, e que este cheiro estava impregnado em mim. Eu o levava comigo no meu corpo toda manhã, quando dirigia até o trabalho; eu tinha dormido com ele todos esses anos – ele resistira aos inúmeros banhos, suores, perfumes e secreções que cobriram meu corpo desde aquela longínqua tarde. Talvez minha ex-mulher tivesse feito algum comentário comigo sobre isso, tentado me alertar, me despertar, e provavelmente eu não a tenha compreendido bem.

(A minha filha nem desconfia, mas eu usava All Star em meados dos anos oitenta, quando tinha a idade dela). Na saída da aula de inglês reparei que muitos dos jovens vinham rindo alto, alguns poucos calados, mas todos usavam All Star. E eu não posso negar que as colegas da minha filha ficavam interessantes de All Star, eu me sentia atraído por aqueles bicos rijos de uma brancura juvenil. Tive vontade de passar a mão, lamber, esfregar o rosto naquelas superfícies lisas e limpas. Enquanto dirigia, imaginei uma daquelas loirinhas chutando minha cara, quebrando meu nariz a pontapés com o bico do All Star, e depois enxugando o sangue até que voltasse a brilhar imaculada a alvura emborrachada. Não é difícil manter-se limpo quando se é jovem – pelo menos suficientemente jovem para não sentir o próprio cheiro.

Liguei o rádio do carro pra me distrair. O noticiário local comentava com uma ênfase polêmica o caso de um menor que teria matado a própria mãe, com uma faca, após uma discussão. O jovem estaria sob influência do crack, e isso parecia suficiente para explicar tudo, para levar a termo todos os argumentos. É provável que ele usasse All Star, pensei, mas o noticiário não dava nenhuma informação sobre isso. Olhei pra minha filha, mas ela já tinha enfiado os seus headphones nas orelhas, devia estar escutando alguma dessas bandas novas que surgem na internet e não tocam nas rádios. - O que é que tu tá ouvindo aí? - perguntei gesticulando à frente dos olhos dela. - Que banda tu tá escutando? - repeti depois que ela afastou um dos fones da orelha.

Não sei onde foram parar todos aqueles materiais de desenho. Com o tempo a gente esquece os mortos – e passa a dar valor a coisas sem importância.


Senegal, 2011 - by Finbarr O'Reilly

quinta-feira, 1 de março de 2012

INDIOSSINCRASIA

allegro ma non
antropo

i_nativo
civil_lesado

triste entrópico
natureza morta

Colonia del Sacramento, Uruguai - foto de Dan Brazil