sábado, 30 de abril de 2011

As diferentes afinações de um mesmo instrumento

O encontro ora ruidoso ora harmônico entre o pensamento religioso e o filosófico rende reflexões interessantes. No artigo abaixo, publicado hoje no Notícias IHU Unisinos, religião e filosofia são postas em discussão mediante a relação com um problema concreto da contemporaneidade - neste caso, a vida dita vegetativa e a angústia dos familiares diante da premência do tempo que passa.


A alma em forma de violão

A circunstância verdadeiramente embaraçosa é que a metáfora da alma como as cordas de um violão, utilizada recentemente por Bento XVI, serve, na sua versão original, para demonstrar que a alma não é imortal.
A análise é da filósofa italiana Franca D'Agostini, professora do Politécnico de Turim e da Università del Piemonte Orientale. É autora, em português, de Analíticos e Continentais (Ed. Unisinos, 2002) e de Lógica do Niilismo: Dialética, Diferença e Recursividade (Ed. Unisinos, 2002). O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 28-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mas o Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, acredita na imortalidade da alma? Provavelmente sim, visto o ofício que faz, mas, à luz das suas recentes declarações, há alguma razão, senão para duvidar, pelo menos para ficar perplexos. Refiro-me à metáfora do violão com as cordas despedaçadas utilizada por ele para explicar à mãe de Francesco (em coma desde 2009) que a alma do seu filho ainda existe, embora tácita, no corpo em estado vegetativo. "A alma não pode tocar", explica o Papa, mas "continua presente".
É uma metáfora antiga e figura sobretudo no Fédon platônico: ela é apresentada por Símias, em uma célebre discussão sobre a imortalidade da alma. Mas a circunstância verdadeiramente embaraçosa é que a metáfora serve para demonstrar que a alma não é imortal. Diz Símias: de acordo, supondo que a alma exista, e que seja algo imaterial que está ligado ao nosso corpo, ela poderia ser como a música de uma lira, que certamente é imaterial, e é algo "invisível, incorpóreo, sumamente belo"; mas "suponhamos que alguém quebre a lira e corte ou arrebente suas cordas": nesse caso, a alma cessaria de existir.
O argumento é verdadeiramente muito forte: admite-se que existe na vida humana uma realidade espiritual, mas unicamente como resultado e fruto de fatos materiais, de reações químicas e físicas. A ideia do espírito como algo que sobrevém inesperadamente sobre o corpo é uma das grandes linhas-guia do materialismo, de Símias a Gassendi, e hoje a David Armstrong ou Jaegwon Kim. O fato de o Papa usar a mesma metáfora dá o que pensar.
Mas o aspecto talvez ainda mais interessante e embaraçoso da questão é que Sócrates refuta a hipótese de Símias servindo-se da tese da pré-existência da alma ao corpo, uma tese que os socráticos consideram indiscutível (sendo a base da teoria do conhecimento como reminiscência) e que a metafísica católica, ao contrário, não pode aceitar de modo algum.
Diz Sócrates: se a alma é o incorpóreo som do violão (da lira) que permanece tácito quando o violão (lira) tem as cordas arrebentadas, certamente não podes admitir que a alma exista em uma vida anterior, antes do corpo. Sim, reconhece sabiamente Símias. Então "qual raciocínio preferes", perguntou Sócrates: o que demonstra a pré-existência da alma ou o que demonstra que a alma é a "harmonia", ou seja, a música, fruto do corpo? Símias não tem dúvida: o primeiro é preferível.
Qual poderia ser, ao invés, a resposta do Papa? O que ele prefere: a ideia da transmigração das almas, ou a da alma que morre com o corpo, nada mais sendo do que o som deste último? Do ponto de vista católico, a alternativa é sem saída: uma via é pior do que a outra.
Talvez, seria melhor evitar o uso dessas metáforas, que revelam toda a fragilidade da filosofia oficial do catolicismo e, além disso, não consolam muito (não tenho a menor ideia de como a mãe de Francesco pôde se sentir tranquilizada com aquilo que lhe disseram: as cordas neste estado estão arrebentadas, e poderiam tocar, mas não tocam).
Muito sensatamente, Símias reconhece que o raciocínio sobre a lira das cordas arrebentadas lhe viera à mente "por parecer-me verossímil e algum tanto conveniente", e argumentos desse tipo "são vãos", servem só para enganar "os demais", com a luminosidade das imagens, mas levam sistematicamente a teses falsas e discutíveis. Ou, talvez, podemos dizer: revelam mais do que o que se gostaria de revelar.

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Não estou muito seguro quanto à compreensão da autora do artigo com relação à metáfora do Papa, já que este me parece mais consciente da ressonância e suas reminiscências sobre o instrumento do que propriamente da necessidade de a corda estar inteira. Talvez ele tenha se expressado no sentido de que a perpetuação de uma vibração da corda na memória - ou a lembrança que os pais têm da vida ativa do filho - sinalize a perpetuação da alma, inscrevendo-a no corpo do próprio filho.

Seja como for, me sendo permitida uma interferência, eu colocaria em relação também a física da música, tão bem revelada no livro O Som e o Sentido. A música, ou antes o som, não deixa de ser também uma manifestação plástica, embora invisível; é física, concreta, na medida em que nasce de vibrações que se expandem pelo ar (lembremos que o ar também não é mera abstração, mas combinação de gases).

"Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos". Sendo assim, talvez seja mais apropriado pensar que é o sentido -formado na ponta final de um processo material - que ultrapassa a realidade física para atingir algo que pode ser comparado à realidade espiritual, ou à alma. Mas o som em si é um processo físico e material, e o apito para cães indica isso com bastante evidência - a menos que se pense que o homo sapiens possui uma alma elevada que só lhe permite distinguir sons que lhe sejam reveladores.

"Toda a nossa relação com os universos sonoros e a música passa por certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos, com os quais jogamos ao ler o tempo e o som". Bem, a partir daí a discussão vai longe, e todo este blog é um reflexo mais ou menos nítido destas variações sobre o ritmo de nossa percepção.


Fiquem em compania do som da flauta japonesa:


quarta-feira, 27 de abril de 2011

Por uma genealogia das verdadeiras mentiras [apostolado nietzscheano para um absurdo não consentido]













Ora, se é verdade que uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, o que resta das nossas verdades, nesse mundo movido pela repetição? A começar pela própria mentira de cada palavra (metáforas desgastadas), a mentira do amor, a mentira das religiões, a mentira da razão – repetidas muitas mil vezes, por milênios. A mentira ensinada nas escolas; a mentira do próprio ensinar (já não o sabia Paulo Freire?). A escola mente quando afirma seu compromisso com o conhecimento, e no entanto a mentira seria tanto maior quanto fosse verdadeiro este compromisso, pois o que se sabe do conhecimento é fruto do pecado original da linguagem humana, filho bastardo de Sócrates com Platão.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Camelo Vermelho

Esta é uma tentativa hipocondríaca e cardíaca de demonstrar o satânico mecanismo de desfuncionamento da internet da interne da intern da inter da inte da int da in da i?

É que eu digitei no Google "camelo vermelho"; desatento ao absurdo, pensava em encontrar a letra da música Vermelho, do novo disco de Marcelo Camelo.

Encontrei foi uma "caravana de portugueses no deserto vermelho". É a sua única chance de imaginar como seria um First Person Shooter do ponto de vista do animal de corcovas. Há uma simpática narração e um final digno de Lawrence da Arábia.


Chame o seu avô para ver, explique-lhe que a internet é maravilhosa. E sua mãe vai gostar de saber que "Se você quer realmente estar na moda neste inverno não deixe de investir em uma peça de roupa no tom camelo e no vermelho", dentre outras sapientes dicas de moda que juntam camelo e vermelho na mesma oração.

E mister Google ainda tem a audácia de perguntar: "Você quis dizer cabelo vermelho?"

Ora, não! O que eu quis dizer está aí abaixo:

Vermelho

Marcelo Camelo

As vezes eu só quero descansar
Desacreditar no espelho
Ver o sol se pôr vermelho
Acho graça
Que isso sempre foi assim
Mas você me chama pro mundo
E me faz sair do fundo de onde eu tô de novo
Nada sei dessa tarde
Se você não vem
Sigo o sol na cidade
Pra te procurar
Eu bem sei onde tudo vai parar
Já não tenho medo do mundo
Sou filho da eternidade
Trago nesses pés o vento
Pra te carregar daqui
Mas você sorri desse jeito
E eu que já perdi a hora e o lugar
Aceito
Nada sei nessa tarde
Se você não vem
Sigo o sol na cidade
A te procurar
Nada de meu nesse lugar
A cidade vai pensar
Que nada aconteceu em vão
Você vai me ligar então mais uma vez


A letra pode não ser tudo isso, mas a música é a melhor do disco Toque Dela - aliás, não tá fácil encontrá-lo na blogosfera, os patrulheiros da ordem devem ganhar a medalha Fukushima de eficiência deste mês. Busque direto nos searchs dos arquivos shared.

Depois descanse, desacredite no espelho e veja o sol se pôr, vermelho.

Cabo Sunion, Grécia

sábado, 23 de abril de 2011

Sessão groove: só entra com fone de ouvido

Putamadre, a ciranda solar musical continua rodando - eu já avisei aos navegantes: a música é que faz girar este planeta. A novidade é que tão filmando essa barbaridade mais e mais.



Pedrada hiponga: nem precisa gostar de hip hop pra grudar o olho no luzedo do vestido da Da Luz; nem precisa gostar de samplers pra curar o ouvido no que fazem os Marginals com sax, bateria e baixo acústico.




Seguindo no groove, saindo do chão direto pro Céu - o céu mais envenenado de malemolência é um inferno paradisíaco de música. Salve nossa senhora.




Quanta coisa acontece nos banheiros deste mundo. E antes que tu esqueça: sorte dos cavalos que deitam pra comer na sombra. Groove à la Letuce.




E pra não dizer que só falei de flores brasileiras, aceite a provocação insinuante e sinuosa do Portico Quartet. O texto a seguir é do Evangelista:

O instrumento é um hang, suíço, inventado em 2000, originalmente percussivo, mas usado aqui com forte intenção melódica, com uma sonoridade entre uma guitarra celestial, o piano-de-dedão africano Mbira, a delicadeza da uma celeste, uma marimba metálica circular. Baixo acústico forte e econômico, bateria jazzística espaçada e sax soprano cheio de climas, sugerindo melodias, completam o som do quarteto, bem jovem, de Londres, dois álbuns lançados em anos recentes. // Jack Wyllie no sax, Nick Mulvey no hang, Milo Fitzpatrick no baixo, Duncan Bellamy na bateria formam o Portico Quartet, jazz moderno a definição básica, "pós-jazz" já sugeriram os jornalistas indie, "world music do futuro" diz a bio. Certo clima de jazz europeu, com toques orientais, mas próximo do universo de grooves da, digamos, Cinematic Orchestra, com uma pegada não muito distante, talvez, do Marginals, e sensibilidade prima, quem sabe, do À Deriva. // Vídeo acima, gravação da faixa "Line", do álbum Isla.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

parágrafo

[como criar conforto com palavras impressas]

"Na popa de seu navio, foram colocados por Ulisses os despojos sangrentos de Dolon, enquanto se preparava um sacrifício para Atena. Os dois heróis, afinal, lavaram o suor abundante no mar, mergulhando nele as pernas, a nuca e as coxas. Depois que as ondas do mar lhes carregaram o suor abundante da pele, quando se lhes confortou o coração, entraram em banheiras polidas e banharam-se. Ambos, asseados e untados de óleo, sentaram-se para a refeição; e de uma cratera cheia de melífico vinho fizeram a libação a Atena."

"Ilíada" de Homero, trad. Octávio Mendes Cajado, ed. Círculo do Livro, 1986, pág. 162

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Triunfos do ser

Brotam férteis respostas por aí à pergunta: por que escrevem?

Estive olhando algumas anotações, refletindo sobre alguns queridos autores, e não pude deixar de pensar que uma motivação e um desafio a todo autor deve ser a expressão da felicidade, definir em palavras o momento daquela alegria iluminada e onipotente que todos já sentimos, decerto raramente. Chamemos este momento, de plena consciência da vantagem do ser sobre o nada, de prazer em estar vivo, simplesmente - chamemos de "o triunfo do ser".

Trago à baila quatro visões do triunfo do ser, de distintas origens geográficas: norte-americana, russa, (sul)brasileira, japonesa. Não que sejam necessariamente representativas de seus rincões, mas que sejam diversas em suas raízes. Todas têm a peculiaridade dos tons autobiográficos, exceto por Simões Lopes Neto que, ao contrário do que muitos devem pensar, viveu no ambiente urbano e ali se desenvolveu, o que não lhe impediu de retratar o campo gaúcho com toda a propriedade. Assim, o triunfo do ser de Lopes Neto é, na verdade, de seu Blau Nunes, o guasca macanudo definidor de uma identidade sul-riograndense. Os demais estão manifestando a sua própria voz, como é o caso de Mishima em "Sol e Aço", de Thoreau em "Walden" e de Dostoiévski em "O mujique Marei". Que falem, então:

Thoreau e a natureza transcendental: "Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal - eis aí vosso êxito. A natureza inteira é vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. (...) Constituem a realidade mais elevada. Talvez os fatos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem. A verdadeira colheita do meu dia-a-dia é algo de tão intangível e indescritível como os matizes da aurora e do crepúsculo. O que tenho nas mãos é um pouco de poeira de estrelas e um fragmento do arco-íris". (Walden ou A Vida nos Bosques , trad. Astrid Cabral, ed. Global, 1984, p. 202-203)

um admirador de Thoreau visitando o lago Walden

Dostoiévski e a floresta da infância: "O verão chegava ao fim e logo seria preciso retomar o caminho de Moscou, aborrecer-me ainda todo um inverno a estudar francês; por isso sentia o coração opresso à idéia de deixar o campo. Atravessei a eira onde se amontoava os feixes de trigo, e, transpondo uma ravina, subi por uma mata espessa que se estendia para lá da ravina, até a floresta. (...) Em minha vida nada amei tanto quanto a floresta com seus cogumelos e suas bagas selvagens, seus insetos e seus pássaros, seus ouriços e seus esquilos, com o úmido e suave odor de suas folhagens putrefatas. Ainda hoje, escrevendo isto, aspiro todo o perfume da nossa floresta, lá longe, na aldeia; estas impressões durarão tanto quanto minha vida". (O mujique Marei, em Noites Brancas e outros contros, trad. Ruth Guimarães, ed. Ediouro, p. 206-207)

cena de algum filme

João Simões Lopes Neto e o pampa aberto: "Lá adiante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rindo, numa trepada de coxilha, numa descida de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços iam se encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ia-se tocando a bagualada de cada querência; de todos os lados cruzava-se a contradança, que se encaminhava sobre uma linha já combinada; e aos poucos ia crescendo o rodeio movediço, que engrossava, redemoinhava, espirrava, tornava a embolar-se... - e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada. Aí a gente entrava a manguear, aos dois lados, e então é que começava, de verdade, o divertimento! Arrematavam-se três, quatro, cinco fletes; corria-se sem parar, seis, dez, doze léguas... - e no fim estava-se folheiro!... Barbaridade! Nem há nada como tomar mate e correr eguada! (...) Aí é que era o lindo! Os fletes montados, alevianados, corriam, alçados no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares… e aquilo era largar as três-marias sobre a paleta do escolhido e o bagual logo rodava, no enleio das sogas. O gaúcho, apeava, ligava, tirava as boleadeiras e já se bancava de novo pra nova nombrada." (Correr eguada, em Contos Gauchescos e Lendas do Sul, ed. Globo, 1978, p. 46)
coxilhas de Canela, Rio Grande do Sul

Mishima e a caminhada solitária: "Meu dia estava cheio até as bordas de corpo e de ação. Havia excitação física, força, suor, músculo, a grama verde do verão estava em toda parte, uma brisa alisava a poeira do caminho por onde eu caminhava, os raios do sol iam ficando oblíquos, e, com minha roupa de treinamento, eu caminhava de maneira extremamente natural. Aqui estava a vida que eu queria. Naquela hora, eu saboreava a alegria solitária do instrutor de educação física voltando entre o velho prédio da escola e o matagal, depois de se desvencilhar de si mesmo na beleza de uma sessão de ginástica numa tarde de verão. Senti naquilo um repouso absoluto do espírito, uma beatificação suprema da carne. Verão, nuvens brancas, o vazio azul do céu após a última lição do dia, e um toque pungente de tristeza tingindo os reflexos do sol passando através das árvores, a felicidade de sentir que me adequava a tudo isso me embriagava. Eu realmente existia! (...) Eu não tinha nenhuma necessidade de ninguém mais, não tinha portanto, nenhuma necessidade de palavras. O mundo onde eu me encontrava era feito apenas de elementos de puros conceitos angelicais; tudo o mais tinha sido, por ora, abolido, e eu transbordava com a alegria infinita de eu e o mundo sermos uma coisa só, uma alegria afim àquela produzida pela água fria sobre a pele incandescida pelo sol de verão". (Sol e Aço, trad. Paulo Leminski, ed. Brasiliense, 1986, p. 57-60)

é ou não é um bom retrato para o triunfo do ser sob o sol?


Há diversas esquinas onde estas felicidades se cruzam e se desencontram. O caráter nostálgico impregna principalmente a Dostoiévski e Lopes Neto (ou melhor, Blau Nunes), visto que são memórias, lembranças do passado. Marcante e decisiva em todos é a presença da natureza. A incomunicabilidade se faz presente na felicidade de Thoreau e também na de Mishima. Blau Nunes relembra, mas o seu triunfo está em plena ação (ou na lembrança da ação?), no corpo talhado e temperado; Mishima triunfa exatamente sobre o esgotamento da ação, sobre o corpo desvencilhado de si. O russo não tem corpo, é uma existência cercada pelo encanto das mil vidas secretas da floresta. O solitário à beira do lago Walden é corporeidade transcendente, um animal em sintonia com o espírito dos fenômenos naturais. Todos estão beatificados pela existência, quando ultrapassa-se as palavras e alcança-se o triunfo do ser.

São amostras, tenho curiosidade em reunir mais exemplos, de outros autores, de outros tempos, de outros lugares. Aliás, do nosso tempo-lugar, este que hoje nos avassala sob o impacto de 21 séculos e epítetos de pós-modernidade, cibercultura, globalização e afins, deste é que tenho mais curiosidade. O que diz a literatura, hoje, do triunfo do ser? Thoreau já sinalizava aos seus contemporâneos para o resgate da natureza como essência elementar - que se agarre o arco-íris com as mãos; Dostoiévski diagnosticava a crise do homem racional e ilustrado - cansado das aulas da razão e da razoabilidade dos motivos; Blau Nunes lamentava o enclausuramento da liberdade primitva - o campo já não era mais aberto e divertido; Mishima procurava delimitar o alcance das palavras e medir a profundidade dos atos - o sol esquenta o aço tempera o homem vence o destino.

sábado, 16 de abril de 2011

Para-brisa da modernidade líquida?

Post surrupiado lá do Trabalho Sujo:


“My most recent paintings and drawings explore the sensation of seeing from a car while driving through the rain. I am fascinated with the constantly changing, yet particular landscapes seen from the car and also the way that the water on the windshield interacts with that landscape. The water creates a shifting lens for the way we see the environment- both highlights and obscures our viewing. Perspectives slip and compress, while shapes and colors merge into one another. I also work with relationships between surface and depth, between flatness and illusion".





Sim, Gregory Thielker é um pintor, não um fotógrafo.

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O post do Trabalho Sujo me faz lembrar que a chuva tem suas insuspeitadas belezas, sejam elas visuais, olfativas, auditivas. E que aqui no Uruguai do Norte temos a oportunidade de conviver intimamente com elas - como bem o sabe Milton Ribeiro.

Também o sabe o italiano que filmou seu para-brisa molhado ao som da delicada Fat Old Sun do Pink Floyd. Ele tenta encontrar uma nesga de sol, acaba descobrindo um raio purpúreo que mais parece uma manifestação da pacífica psicodelia divina.



sexta-feira, 15 de abril de 2011

wish-wash

Dizem que na Tailândia se comemora o ano novo de 13 a 15 de abril, com a chegada do calor. Parece que em lugar de champanha, ondinhas, lentilhas e lamentáveis reuniões familiares, os tailandeses vão às ruas numa guerra cristalina de água. Elefantes também participam, com sua peculiar mangueira. Piriguetis de camisa branca fazem as vezes de trio elétrico, para delírio das massas masculinas. Tiros de água nas escolas. Sem ecochatos para pesarem na consciência do desperdício dos recursos hídricos. Bem, fica a dica para as férias do ano que vem.

Festa boa pruma câmera

Há quem prefira Ivete Sangalo

Elefantes mais psicodélicos do que Júpiter Maçã na sétima efervescência

Peleia braba

As pessoas já estão meio emputecidas, mas o elefante ao centro está rindo que nem guri com brinquedo novo


Massacre de crianças?

Todas as imagens são do ótimo blog fotográfico The Frame

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Argentina refulgente

Este vídeo é mais uma prova de que o mundo nada seria sem a música. Dedico-o aos infiéis que não crêem ser a música a força que move o planeta Terra na ciranda solar espacial.


São imagens do casamento de Máxima Zorreguieta, intitulada princesa da Holanda, com Willem-Alexander, príncipe de Orange. Não vou tentar explicar as intricadas relações de laços nobiliárquicos que envolvem este casal real, pois são tão complicadas quanto as equações das teorias das cordas no campo gravitacional (?!). Contento-me em saber que a moça é argentina, filha de ministro do tenebroso governo Videla, que seus pais não aprovaram o casório, que ela não se converteu ao protestantismo do marido, e que provavelmente nem ela deve ter entedido como funciona o sistema de titulações e predicados da casa real holandesa. Pelo menos é o que se infere do Wikipedia.

O que nos importa é que ela deve ter gostado da pomposa cerimônia, onde, a despeito das câmeras indiscretas sobre suas lágrimas, ouviu a pérola de Piazzolla sendo executada com direito a coro, harpa, xilofone e orquestra: Adiós Nonino, a vertente de beleza que a morte do pai inspirou ao célebre argentino.

Terá a princesa também lembrado do pai? Terá chorado a terra da infância perdida, nalguma esquina de Buenos Aires? Terá sido iluminada pela compreensão de que a música expressa tudo aquilo que as palavras não conseguem e que os olhares ensaiam?

Tudo isso em plena Amsterdã. São as voltas que o mundo dá, embalado pela música.


Ah, e o silêncio ao final da música... tão belo quanto.

domingo, 10 de abril de 2011

Por que escrevem, estes senhores?

Escritores e escritoras trabalham diante de simpáticas máquinas de escrever, nesta seqüencia de 19 fotos.

Faulkner ensolarado
As imagens evocam reflexões sobre o processo de criação. Algumas são intimistas, parecem mergulhar na profundidade do ego; outras lembram o que disse Garcia Lorca: "volta-se da inspiração como se volta de um país estrangeiro".

a temperança de Hemingway

Trago ao encontro das fotos a matéria publicada pelo La Nación onde 50 escritores esforçam-se por definir e justificar o ímpeto criativo das suas palavras:

¿Por qué escribimos?

Por Jesús Ruiz Mantilla
EL PAIS - GDA

Algunos llegaron a la literatura por vocación, por el placer de la lectura y para emular a los autores que admiraban. Ahora crean por necesidad vital, o simplemente lo hacen por dinero. Autores de renombre revelan los motivos por los que dedican sus vidas a la escritura.

En el principio fue el verbo... Así lo recoge San Juan en su Evangelio. La palabra que conforma el mundo, el nombre que lo explica todo. Puede que no fuera tal, puede que antes del verbo existieran cielos, mares, noche, día, estrellas, firmamento. Pero si nadie sabía cómo nombrarlos, no eran nada, absolutamente nada. Así que al principio fue el verbo, como bien dejó escrito Juan. Y a ese verbo bíblico lo siguieron la épica de Homero, la intemperie y el poder de los dioses, el amor y la guerra que nos relata la Ilíada y, después, el delirio del Quijote, y luego, la soledad de Macondo.

Puede que después de episodios narrados como aquéllos no hiciera falta nada más. Pero a los clásicos, que montaron todos los cimientos del templo, siguieron más generaciones -"el eslabón en la cadena ininterrumpida de la tradición", de la que alerta Enrique Vila-Matas-, algunas nuevas preguntas para cada era, nuevos problemas y, por lo tanto, conceptos nuevos, palabras nuevas. Detrás de su registro se escondía un escritor. ¿Por qué?

¿Por qué escribir? ¿Para qué nombrar? ¿Para qué contar? Para entender. Para amar y que te amen. Para saber, para conocer. Por miedo, por necesidad, por dinero. Para sobrevivir, porque no todo el mundo sabe bailar el tango, ni jugar bien al fútbol. Por costumbre, para matar la costumbre, por vivir otras vidas y revivir la propia. Por dar testimonio, porque no se sabe escribir bien, confiesa John Banville. Porque leyeron, padecieron y miraron cara a cara a la muerte.

Porque el verbo provoca desasosiego en Nélida Piñón; porque no se elige, como un amor, añade Amélie Nothomb. Por ser el masoquista que uno lleva dentro, aduce Wole Soyinka; por los arroyos y los torrentes de los libros leídos, cuenta Fernando Iwasaki; como forma de existencia, según Elvira Lindo. "Una manera de vivir", dice Vargas Llosa, parafraseando a Flaubert. Para sentirse vivo y muerto, proclama Fernando Royuela. Igual que uno respira, suelta entre interrogaciones Carlos Fuentes. O para sobrevivir a ese fin, "a la necesaria muerte que me nombra cada día", testimonia Jorge Semprún.

La escritura es dolor y placer. Como el cuento, como la retórica aristotélica, se arma, se aprende. Principio y fin. Antes que nada vino el verbo, lo deja claro San Juan. También lo sabía Kafka. Pero el escritor checo pregunta: "¿Y al final?". Quizás silencio, como interpreta sobre su obra George Steiner, con buen tino, oliéndose el apocalipsis de la destrucción europea.

Como testimonio también se mete uno entre papeles. Se escribe por el mismo motivo por el que Ana Frank comenzó a organizar su diario. O por el que la poeta rusa Anna Ajmatova, cuando se pasó 17 meses en las filas de las cárceles de Leningrado para ver a su hijo, respondió a una mujer que la reconoció y le preguntó si podría describir aquello que sí, que lo haría. "Entonces -dice Anna en Réquiem -, una especie de sonrisa se deslizó por lo que alguna vez había sido su rostro." Eso fue suficiente motivo. La emoción de la verdad, la justicia de dejar constancia. Para que otros quizás lo aplicaran a su presente, para que no se repitiera.

Pero Anna Ajmatova confesó, además, que escribía por sentir un vínculo con el tiempo. También se lo hizo por amor, por miedo al amor, por desgarro. En honor a las musas, como Shakespeare, "ese goloso de las palabras", a juicio de Steiner, en sus sonetos: "Mi musa por educación se muerde la lengua y calla mientras se compilan/ elogios que te visten de oropeles/ y frases que las otras musas liman". Una pieza que termina con toda una declaración de intenciones y una respuesta al gran asunto de la escritura: "Si a otros por sus dichos los respetas/ a mí, por lo que pienso, que es mi letra".

Al principio fue el verbo. Pero Cervantes y Shakespeare lo enaltecieron, lo igualaron a la medida de Dios. Porque exploraron todos los delirios y las pasiones de sus criaturas. ¿Por qué escribir? Para emularlos, sin más. Podría ser. "Para parecerme a Espronceda", como suelta Caballero Bonald. Escribir porque se medita, como Descartes, como Chesterton, cuya obra nos envuelve en una paradoja sin fin. Para adentrarse en los laberintos y no necesariamente querer salir de ellos, como Borges. "Porque estamos aquí, pero querríamos estar allí", dice Antonio Tabucchi. Por emular la infancia, cuando la niña Almudena Grandes enmendaba la plana a los finales que no le gustaban. Por volver a inventar historias de indios, vaqueros y pitufos, dice David Safier. Porque a la hora de hacerlo, "disfrutar es una palabra que se queda corta", confiesa Ken Follet.

Para fijar la memoria, una forma de "hacer surgir los recuerdos y las imágenes", cuenta Álvaro Pombo. Para volver a vidas anteriores, a las lecturas y los tumbos que cada uno lleva en la mochila, según Arturo Pérez-Reverte. Como vicio solitario, describe Héctor Abad Faciolince. Porque uno no se encuentra bien, asegura Juan José Millás. Por afición o por aflicción, dice Gonzalo Hidalgo Bayal. O porque le gustaban las redacciones en el colegio, como descubrió Antonio Muñoz Molina. Y hasta hoy.

La palabra es agua y cada historia, el río que las lleva. El escritor es quien domina la corriente, como hicieron Balzac, Dostoyevski, Dickens, Galdós, Clarín, Flaubert, Tolstoi, que siguió la estela épica de Homero como nadie. O el que va contra la corriente, como Marcel Proust, James Joyce, Valle-Inclán. Sin dudas, hay que enfrentarse a ello, como dice Josep Pla en su Diccionario de Literatura , "con temperamento". O con el empeño de conocerse, a la manera de Montaigne y los grandes memorialistas posteriores del siglo XVIII. Entre la verdad y la exageración, pero con talento, como Casanova.

El juego, la tortura de la palabra, también es lícito. Pero eso es más cometido de los poetas, como admitía Jaime Gil de Biedma. Para él, escribir era "erosionar el idioma en la forma en que el idioma lo admite". Es decir, maltratar el verbo, fustigarlo, estrangularlo. Pero para resucitarlo después, como el Evangelio. A lo largo de la historia, el escritor ha visto crecer Babel y ha contribuido a entenderla. Pero hubo también un tiempo, en el siglo XX, que lo aniquiló, que se arrojó al apocalipsis, con la Segunda Guerra Mundial. Disfrutemos en esta nueva era. Todos los motivos, todas las respuestas que se les ocurran a quienes deben contar nuestra historia son válidos.


Mil longas alegrias

Havaí, 1907
Basta que se abra a janela, que se ouça lá fora o burburinho das gentes e dos pássaros, ou o vozerio risonho de vizinhos. Basta que se diga uma bobagem qualquer para puxar assunto, basta o zumbido da TV, o som alto do automóvel, um grito de pátio de escola, um assovio de final de expediente, uma cantada sorridente. Basta uma promessa de sábado. Basta a última traição, o primeiro beijo; a roupa nova, o velho jeito; bastam cervejas geladas, abraços quentes. Basta bastante qualquer coisa, que nos faça esquecer da falta que faz outra coisa qualquer.

Mas e da alegria profunda? Alegria fria e sem medida; alegria sem janela, sem vizinho, sem barulho, sem sábado? Que poeta de ruas da infância, que pessoa de rio de aldeia, que moça de canteiros de framboesa, que amante de chama eterna, quem, quem, quem sabe o que é alegria profunda?


Alasca, 2011


Ramilonga

Vitor Ramil

Chove na tarde fria de Porto Alegre
Trago sozinho o verde do chimarrão
Olho o cotidiano, sei que vou embora
Nunca mais, nunca mais

Chega em ondas a música da cidade
Também eu me transformo numa canção
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí


Ramilonga, Ramilonga

Sobrevôo os telhados da Bela Vista
Na Chácara das Pedras vou me perder
Noites no Rio Branco, tardes no Bom Fim
Nunca mais, nunca mais


O trânsito em transe intenso antecipa a noite
Riscando estrelas no bronze do temporal
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí


Ramilonga, Ramilonga

O tango dos guarda-chuvas na Praça XV
Confere elegância ao passo da multidão
Triste lambe-lambe, aquém e além do tempo
Nunca mais, nunca mais


Do alto da torre a água do rio é limpa
Guaíba deserto, barcos que não estão
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí


Ramilonga, Ramilonga

Ruas molhadas, ruas da flor lilás
Ruas de um anarquista noturno
Ruas do Armando, ruas do Quintana
Nunca mais, nunca mais


Do Alto da Bronze eu vou pra Cidade Baixa
Depois as estradas, praias e morros
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí


Ramilonga, Ramilonga

Vaga visão viajo e antevejo a inveja
De quem descobrir a forma com que me fui
Ares de milonga sobre Porto Alegre
Nada mais, nada mais



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Realengo



"Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo", dizia a letra de Tempo Perdido - "e o que foi prometido, ninguém prometeu".

O Brasil caminha a passos largos rumo ao envelhecimento da população, conforme as tendências demográficas. O que será da juventude do tempo perdido? E o que resta à juventude de hoje, além de todo o tempo do mundo? O que faz uma juventude na escola, além de esperar o final da vida escolar? O que faz a juventude após terminar a escola, além de remoer as promessas que ninguém prometeu?

O cineasta norte-americano Gus Van Sant dedicou alguns belos filmes ao olhar da juventude. A referência mais evidente é Elephant, ficção baseada no célebre massacre de Columbine. Menos conhecido é Paranoid Park, cujas primeiras cenas estão aí:


Poderíamos ter mais cinema assim, com o olhar da juventude de dentro pra fora.

E antes que alguém diga que poderíamos ter mais rock genuíno de juventude, que tal ouvir "Tudo que eu sempre sonhei" dos Pullovers? (Os tempos correm tão depressa que já há uma parte da letra ultrapassada pelos acontecimentos).


Tudo Que Eu Sempre Sonhei

Pullovers

Composição : Luiz Venâncio

Sempre pensei que aconteceria,
de criança acreditava nos adultos
que era só pagar pra ver.
Feio, meio assim desconfiado,
perna em xis, já barrigudo,
duvidando que eu conseguisse crescer.
Mesmo assim, contudo,
o tempo foi passando
e eu fui adiando, mudo,
os grandes dias que ia conhecer.
Quem sabe amanhã? Próximo ano?
Cebolinha com seus planos
infalíveis ia me ensinar a ser
 
forte, corajoso, bom de bola,
um dos bonitos da escola
muito embora eu não fizesse questão.
Ainda bem que eu sou brasileiro,
tão teimoso, esperançoso,
orgulhoso de ser pentacampeão,
já que se eu fosse americano
pegaria uma pistola
e a cabeça ia perder a razão:
mataria quinze na escola,
estouraria a caixola
e apareceria na televisão.

E por fim cresci, de insulto em insulto
eu me vi como um adulto,
culto, pronto pra o que mesmo? Já nem sei.
Olho e não encontro,
penso se não fui um tonto
de acreditar no conto
do vigário que escutei.
Não tem carro me esperando,
não tem mesa reservada,
só uma piada sem graça de português.
Não tem vinho nem champanhe ou taça,
só um dedo de cachaça
e um troco magro todo fim de mês.

Tudo que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Quanto ainda está por vir...

Mas bobagem, quanta amargura,
eu já sei que a vida é dura,
agora é pura questão de se acostumar.
Basta ter coragem e finura
e o jogo de cintura
aprendido dia a dia, bar em bar.
Pra que reclamar se tem conhaque,
se na tevê tem um craque
e o meu Timão só entra pra ganhar?
Pra que imitar Chico Buarque,
pra que querer ser um mártir
se faz parte do momento se entregar?

E por fim tem até namorada,
bonitinha, educada,
séria, tudo o que mamãe vive a pedir.
Tem beijinho e também trepada
e a consciência pesada
a cada nova vontadinha que surgir
de outra mulher, de liberdade,
de um amor de verdade,
de poder fechar os olhos e sorrir,
pensando que então, dali pra frente,
seja qual for tua idade,
o melhor ainda vai estar por vir!

Tudo o que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Quanto ainda está por vir...
Tudo que eu sempre sonhei.
Tanto que eu consegui...
É tão bom estar aqui...
Eu sei.


O disco é bem bacana e pode ser baixado no site da banda.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O possível primeiro retrato de Jesus


Poderia ser o primeiro retrato de Jesus, esculpido pelos seus contemporâneos e usado como "capa" de um livro sagrado que contém imagens e relatos sobre a vida e sobre a morte de Cristo. Uma descoberta que faz enlouquecer de curiosidade, empolgação e preocupação todo o exército de arqueólogos, colecionadores, bibliófilos e historiadores das religiões que palpitam por todo achado na Terra Santa: nada de tão antigo já surgiu sobre o cristianismo.

A reportagem é de Enrico Franceschini, publicada no jornal La Repubblica, 04-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Alguns são levados a chamá-lo de "o diário de Jesus". Outro notam que a existência de um livro selado, que contém informações sagradas, é mencionada na Bíblia, nas Revelações. É possível que aquele livro, confeccionado pelos primeiros cristãos, por seguidores que haviam visto, ouvido e seguido jesus nas suas primeiras peregrinações, tenha sido enfim encontrado?


Há um grande "se" ao lado dessas perguntas: se o livro é autêntico. Certamente, ele já colocou em ação uma série de tratativas, investigações, maquinações na metade do caminho entre o Código da Vinci e um filme de Indiana Jones. É uma história que começa no deserto da Jordânia, passa por Israel e acabe em Londres.

Começa com o inevitável pastor árabe que, há cinco anos, explorando em uma caverna da Jordânia, em uma zona selvagem ao longo da fronteira com a Síria e Israel, encontrou códices selados, esculpidos em bronze. Eles têm as dimensões de um cartão de crédito. São 70 livrinhos de uma dezena de páginas cada um.

A zona onde foram encontrados chama-se Saham, a cinco quilômetros de uma antiga fonte, onde, há 2 mil anos, no primeiro século da era cristã, seitas messiânicas judaicas se refugiaram depois de várias revoltas contra o Império Romano em Jerusalém.

Há três anos, o pastor vendeu os códices a um pequeno comerciante beduíno israelense, Hassan Saida, que transportou ilegalmente os preciosos livrinhos da Jordânia para o Estado judeu. Saida tentou fazer com que fossem autenticados pelo Sotheby, pelo British Museum, por outros, mas só obteve recusas, porque a proveniência dos objetos não era clara, e os especialistas temiam uma fraude.

Depois, com a ajuda de alguns arqueólogos britânicos, David e Jennifer Elkington, fez-se com que alguns códices chegassem à Oxford University. Os primeiros testes confirmaram que o chumbo tem origem no Mediterrâneo, que é do primeiro século e que a corrosão é autêntica. Outros testes feitos na Suíça, no National Materials Laboratory de Dubendorf, deram o mesmo resultado.

Nesse ponto, a Jordânia grita pelo furto e quer o material traficado novamente de volta. O beduíno desaparece. E os dois arqueólogos britânicos que têm alguns dos códices dizem estar sendo perseguidos e terem recebido ameaças obscuras.

Ninguém ainda traduziu os textos dos livrinhos, exceto duas palavras: "Salvador de Israel" e Yahweh – Deus. E o fato de haver, na capa, uma imagem confirma a ligação com o cristianismo, porque, para o judaísmo, é idolatria retratar a divindade.

Se os códices são autênticos, seria uma descoberta potencialmente mais importante do que os Manuscritos do Mar Morto. Mas os céticos lembram as crescentes dúvidas sobre o "túmulo de Tiago, irmão de Jesus", anunciada ao mundo por ninguém menos do que James Cameron, o diretor de “Avatar”.

Como mínimo, gravariam um filme sobre isso. Como máximo, temos a primeira "fotografia" de Jesus e um segredo sobre o cristianismo que permaneceu fechado por 2 mil anos em uma caverna.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O futuro não é mais como era antigamente


Cena do filme Tempos Modernos

"Entraram. Com o perfume de âmbar cinzento e de sândalo, o ar parecia quente e pesado. No teto em cúpula da sala, o órgão de cores pintara momentaneamente um pôr-do-sol tropical. [...] Como gatos melodiosos ao luar, os sexofones gemeram, nos registros alto e tenor, como se estivessem desmaiando. Com uma riqueza prodigiosa de sons harmônicos, seu coro trêmulo se foi elevando a alturas mais sonoras, cada vez mais sonoras - até que, por fim, com um gesto da mão, o maestro desencadeou a arrasadora nota final de música do éter [...]. Fazendo evoluções de five-step com os outros quatrocentos pares no salão da Abadia de Westminster, Lenina e Henry dançavam, entretanto, em outro mundo - o mundo quente, cheio de cores vivas, o mundo infinitamente acolhedor criado pelo soma. Como todos eram bons, e belos, e deliciosamente divertidos! [...] E quando, esgotados, os Dezesseis depuseram os seus sexofones e o aparelho de Música Sintética começou a executar o que havia de mais moderno em Blues Malthusianos lentos, Lenina e Henry eram como dois embriões gêmeos, embalados docemente pelas vagas de um oceano de pseudossangue."

Neste que é um dos bons momentos de Admirável Mundo Novo, o leitor do século XXI terá a viva impressão de que a balada do fim de semana foi sonhada por Huxley em 1931, e de que a Música Sintética que rege o lazer dos casais descompromissados é um nome antiquado para a música eletrônica. Que seja, a ficção científica é feita de sonhos que antecipam o absurdo do futuro. Mas talvez nem devêssemos ir tão longe: já o rock continha os elementos necessários para pintar o quadro da balada embalada por alucinógenos. Podemos mesmo dizer que, ainda antes, o jazz prefigurava o som e a fúria dos anos vindouros da música de massas nos centros urbanos: no princípio o jazz era sexo, depois dança e a seguir música, segundo o escritor símbolo da Jazz Age, Scott Fitzgerald - e era muito provável que Huxley tivesse algo assim em mente naquele início da década de 1930, quando abria-se a era de ouro de Duke Ellington e das big bands de jazz swing.

O fato é que Admirável Mundo Novo é guindado ao status de clássico em virtude de suas visionárias sondagens sobre a moderna sociedade industrial. Fecundo nas ideias e erudito quanto ao arcabouço de informação do autor, o clássico se revela incapaz de sustentar-se formalmente. Passadas oito décadas desde o choque sobre o público leitor e seu impacto sobre as ressentidas nacionalidades europeias do entre-guerras, a distopia perdeu força - não tanto pelo conteúdo programático quanto pela pobreza estética.

Admirável Mundo Novo sofre de dois males que o condenam já no primeiro capítulo, e ainda antes, no prefácio que o autor escreveu quinze anos depois: didatismo, a praga da literatura dita progressista, e seu corolário predileto e mais lamentável, o moralismo. Sim, difícil evitar tais ismos naquele contexto de premência histórica, mas basta lembrar de outros clássicos daquela época para que ponha-se a claro a riqueza dos recursos da literatura diante da realidade; fiquemos com obra semelhante em muitos aspectos: O Lobo da Estepe, de  Herman Hesse, 1927.

Onde Hesse imprimiu sugestões, seduções, dissoluções e inflexões, Huxley construiu rigidez, causalidade, finalidade e previsibilidade - menos pelo caráter próprio de cada autor do que pela capacidade de manusear com criativa ousadia o potencial das letras. Huxley abre sua história com um capítulo que é o espelho do que pretende: alunos são guiados por tecnocratas em visita a complexo tecnológico; evidentemente, o leitor-aluno guiado pelo autor-tecnocrata recebe em minúcias todas as informações sobre o funcionamento daquele cosmo - o problema é que, ao contrário dos personagens, que consomem com prazer neófito as explicações e instruções, não tem o leitor qualquer necessidade de comprazer-se com monólogos tão aborrecidos (e é bom salientar que não são aborrecidos pelo tema, mas pela falta de abertura, pela demasiada evidência com que se apresentam e se resolvem). Didatismo em sua plena forma. Seria preferível enfrentar o livro sem manual de instruções.

O capítulo seguinte injeta algum ânimo no leitor que não tiver desistido. E no capítulo 3 o obstinado leitor é premiado, de fato, por sua persistência; o capítulo é uma exceção notável na obra, todo tramado em diálogos que se sucedem em síncope contrapontística entre vários grupos de personagens (p. 96-97):

- Cortou-se a extremidade superior de todas as cruzes para delas se fazerem TT. Havia também uma coisa chamada Deus.

- É de pseudomarroquim legítimo.

- Agora temos o Estado Mundial. E as comemorações do Dia de Ford, os Cantos Comunitários, os Ofícios de Solidariedade.

'Ford! Como eu os odeio!', pensava Bernard Marx.

- Havia uma coisa chamada Céu; entretanto, eles bebiam quantidades enormes de álcool.

'Tal como carne, como um pedaço de carne.'

- Havia uma coisa chamada alma e uma coisa chamada imortalidade.

- Pergunte a Henry onde a comprou.

- Mas eles tomavam morfina e cocaína.


Bem menos criativos são os diálogos dali pra frente. No capítulo 8 reina o didatismo; o capítulo 10 é de uma previsibilidade francamente frustrante. Seguem-se páginas e páginas no mínimo desnecessárias, quando não excessivas. O tema se mantém interessante, mas a deliberada condução do autor sobre todos os aspectos da história, a impossibilidade de aberturas à intervenção do leitor, o estandarte moral aberto sobre os destinos da história, o compromisso dos personagens em conformarem-se às necessidades da narrativa, a própria narrativa engessada na linha reta e rasa da parábola distópica, a previsibilidade, o didatismo, o moralismo, muitas são as razões que exaurem a legitimidade estética deste romance. Junta-se a A Revolução dos Bichos na medida da proporcionalidade da força de premência histórica da alegoria sócio-política, de um lado, e da debilidade do potencial lírico, de outro - que fazem destas obras monumentos preservados menos por seus méritos artísticos do que por suas relevâncias históricas.

Em determinado momento da história, Lenina cumpre suas funções no manejo do Depósito de Embriões, etapa de produção de seres humanos. Ocorre que instala-se uma instabilidade extraordinária no sistema, sempre perfeito, pois ela está distraída em devaneios de uma incompreendida paixão por John, o Selvagem. É muito para estas poucas linhas, mas o leitor que acompanha a narrativa não tem nenhuma dificuldade em compreender isso e imaginar os desdobramentos daquela imperfeição no futuro do sistema. Entretanto, veja-se como Huxley procede de maneira a subestimar a inteligência do leitor (p. 288):

"Suspirou profundamente enquanto enchia a seringa. 'John', murmurou para si mesma, 'John...' Depois: 'Meu Ford, será que eu dei a injeção de doença do sono a este aqui, ou não?' Simplesmente não conseguia lembrar-se. Afinal, decidiu não correr o risco de dar-lhe uma segunda dose e avançou ao longo da fileira para o bocal seguinte.
(Vinte e dois anos, oito meses e quatro dias depois, um jovem e promissor Alfa-Menos, administrador em Muanza-Muanza, morria de tripanossomíase - o primeiro caso em mais de meio século.) Suspirando, Lenina recomeçou seu trabalho."

A julgar pelos parênteses, não é desejável a interferência da capacidade imaginativa do leitor. Huxley quer dizer tudo, como o tecnocrata do primeiro capítulo, e assim canalizar o potencial criativo dos alunos-visitantes dentro dos limites da sua cartilha distópica. O próprio autor explicita suas intenções no prefácio (p. 14):

"Se eu reescrevesse o livro agora, ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem. Entre as duas pontas do seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito - possibilidade já realizada, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável Mundo Novo, estabelecidos dentro dos limites da Reserva. Nessa comunidade, a economia seria descentralista e georgista, e a política, kropotkiniana e cooperativista. A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a exemplo do sábado, tivessem sido feitas para o homem, e não (como no presente e ainda mais no Admirável Mundo Novo) como se o homem tivesse de ser adaptado e escravizado a elas. A religião seria a procura consciente e inteligente do Objetivo Final do homem, a busca do conhecimento unitivo do Tao imanente ou Logos, da Divindade transcendente ou Brama. E a filosofia de vida predominante seria uma espécie de Utilitarismo Superior, em que o princípio da maior felicidade ocuparia posição secundária em relação ao Objetivo Final - e a primeira pergunta a ser formulada e respondida em qualquer contingência da vida seria: 'De que modo este pensamento ou ato ajudará ou impedirá a consecução, por mim e pelo maior número possível de outros indivíduos, do Objetivo Final do homem?' [...] Assim alterado, Admirável Mundo Novo possuiria uma inteireza artística e filosófica (se é admissível usar uma palavra tão importante a propósito de uma obra de ficção) que, em sua forma atual, evidentemente lhe falta."

Acho oportuno lembrar aos desavisados de que Huxley não está sendo irônico ou sarcástico, mas, pelo contrário, está descrevendo sua concepção de mundo ideal, que está explícita no romance pela ausência, pela inversão. Nestes termos, e dada a maneira como o autor conduz-nos pelo Admirável Mundo Novo, me dou o direito de pensar que a distopia não é tão má assim, e respiro aliviado por saber que o mundo ideal dos moralistas é sempre derrotado pela realidade torta e viva dos homens - e da sua arte.

"Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley, tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano, ed. Globo

Lucas Petry Bender