Estamos em Paris, acompanhando a
vida um tanto enfastiada de François, professor universitário de
literatura que dedicou grande parte da sua produção acadêmica à obra de
Joris-Karl Huysmans (1848-1907), a quem considera “um companheiro, um amigo fiel”. De fato, François usufrui da
literatura como o contato mais íntimo e profundo com outro ser humano. Se sua devoção
à leitura não lhe livra do peso do tédio, ao menos lhe proporciona um sofisticado
e intenso universo interior, como bem sabe aquele cujos melhores amigos estão
muito vivos em volumes de páginas impressas, ainda que mortos na realidade
flagrante e imediata.
Seja como for, a realidade última da condição
humana parece ser a mesma com relação aos protagonistas das obras anteriores de
Houellebecq: a solidão – agravada, no caso de François, diante da frustração da
experiência docente e de relacionamentos amorosos de afetividade muito volátil,
que geralmente acabam porque as companheiras haviam “encontrado alguém” – locução contemporânea que trai a negação da
responsabilidade, alimentada por um precário fatalismo romântico. Nota-se que
daí para a inviabilidade daquilo que se considera família, há apenas um passo –
cobrindo, ainda, a amargura e o rancor decorrentes, ampliadas pelo
envelhecimento e degradação do corpo. Sob o efeito do cansaço e do desânimo –
provocados pelo desejo de evitar qualquer desilusão e decepção – já não é
possível sentir-se em condições de manter uma relação amorosa. A lucidez do
diagnóstico vem acompanhada de uma importante constatação de François, cuja
franqueza é isenta de ironia: uma saia curta pode facilmente mudar a situação,
tirando mesmo o mais prostrado homem da inércia. “Para o homem”, reflete François sobre o gênero masculino, “o amor nada mais é que o reconhecimento pelo
prazer dado”. Não é tão difícil concordar quanto é admitir que uma felação
caprichada pode justificar a vida de um homem. Entretanto, as relações sexuais
ocasionais também acabam em desilusão, sinalizando aquele mesmo cansaço e a
consequente decadência. Sim, estamos navegando em águas niilistas, mas veremos
que isso não esgota o assunto, pois há algo no horizonte; na verdade, esta
advertência vale para todos os romances de Houellebecq.
Na época de grande e intensa
produção intelectual, François sentia-se justificado. Mas aquilo bastava mesmo
para justificar uma vida? “E a troco de
que uma vida precisa ser justificada?”, indaga-se François – sinalizando
para a sua relação conflituosa com seu próprio niilismo. No que se refere ao
seu ícone de referência, depois do seu apogeu com Às avessas Huysmans escapou do impasse percorrendo uma trajetória
de conversão católica. François, após o apogeu da sua relação amorosa com a
ex-aluna Myriam, vê-se incapaz de amar, incapaz de crer, confrontando-se com o
tédio, “à espera da morte” – como constata
passivamente, sem drama.
É neste momento que se ergue com
toda a força o contexto político das eleições presidenciais de 2022 na França,
com a ascensão da Fraternidade Muçulmana, ao mesmo tempo em que estouram
confrontos nas ruas, com vítimas fatais, embora com pouca repercussão na mídia.
A resignação geral dos franceses é confrontada com a energia de um radicalismo
que pretende se impor a partir da destruição – qualquer semelhança com o ISIS,
o autoproclamado Estado Islâmico, não será gratuita, como atestam os bem
conhecidos incidentes trágicos no dia do lançamento de Submissão. Mas o verdadeiro projeto civilizatório é outro, e se
articula através das vias democráticas, principalmente a partir da formação de
amplas frentes político-partidárias. Para compreender este processo, é preciso
observar que parece haver, entre os europeus, um anseio generalizado por algo
que valha a submissão, mas não há nada que o mereça – podemos reconhecer aí os
efeitos da decadência generalizada de valores caros ao Ocidente, como a crise
de representatividade, a morte de Deus, a erosão familiar, a inconstância do
afeto, a desmoralização das instituições – o que é capitalizado a favor do
Islã, através de seus princípios, costumes e normas, como casamento por
interesse, famílias numerosas e solidárias, divindade exuberante, compromisso
moral, engajamento comunitário, entre outros. O contato com o islamismo, no
coração da Europa em crise, acentua o impasse, na medida em que os muçulmanos
se mostram bem menos vulneráveis à crise de sentido. Nesse contexto, o cultivo
de uma religiosidade torna-se inclusive uma “vantagem seletiva”, no sentido de que entre as comunidades
monoteístas as taxas de natalidade são maiores, especialmente entre os
muçulmanos, em virtude, principalmente, de fatores de matrizes patriarcais –
como restrições ao hedonismo, ao individualismo e à liberação feminina.
Uma guerra civil ganha curso. Mas
a violência é insustentável, ainda mais diante do sucesso das manobras
democráticas, que levam a Fraternidade Muçulmana a vencer as eleições. A partir
de um processo de dissolução da oposição esquerda/direita numa ampla frente
republicana, implementam-se reformas sociais e econômicas que parecem revigorar
a fragilizada autoestima europeia, enquanto a cultura islâmica passa a
prosperar no centro do Ocidente, desenvolvendo a tendência de assimilar os
Estados-Nações europeus num grande conjunto federal.
Em viagem ao interior da França,
a fim de escapar dos traumas provocados pelas mudanças a partir da capital,
François se depara com vilarejos e igrejas medievais que reconstroem a história
da cristandade, inclusive em suas disputas com o Islã. Em paralelo, corre a
recuperação da trajetória de Huysmans, que, em determinado momento da vida,
voltou-se à Igreja Católica, tanto pelo fascínio estético, quanto pela fuga das
pequenas amolações da vida ordinária, até ser cativado propriamente pelo fervor
espiritual. François parece ser atraído para o mesmo caminho – possivelmente,
mais pela procura de um modo de manter sob controle seus apetites e desejos,
além da busca pela segurança ontológica (pela submissão) – num movimento que se
direciona também à reconstituição de uma cristandade europeia, embora agora
haja a necessidade de um acordo e de uma aliança com o Islã. No contexto que então
se articula, sinaliza-se para o caráter do Islã como o de um “novo humanismo”, reunificador,
proclamando sincero respeito pelas três grandes religiões abraâmicas. O
verdadeiro alvo a ser combatido a partir da nova configuração sócio-política
será o secularismo, a laicidade e o materialismo ateu. Apenas um passo separa o
católico de tornar-se muçulmano, como demonstram as conversões dos colegas de
François, seduzidos não tanto pelos aspectos espirituais, quanto pelas
vantagens materiais concedidas pela coalizão liderada pelos muçulmanos. Resta a
questão da fé: onde ela entra? É mesmo necessária? O retorno do religioso pode
ser uma tendência que prescinda da fé, fundamentando-se em vantagens culturais?
A grande referência do novo bloco
transnacional que passa a se formar é o Império Romano, deslocando o centro de
gravidade da Europa para o sul, em torno do Mediterrâneo – com a perspectiva,
ainda, do apoio das petromonarquias do Golfo. Há um ambicioso projeto de
civilização, que parece confrontar as seguintes questões: é possível
civilização sem religião? Uma civilização materialista é sustentável, em longo
prazo? Quais as bases necessárias para isso, considerando a crise de valores
ocidentais e o combalido humanismo secular?
François percebe que a Pátria e a
República parecem não bastar; surge a necessidade de algo maior e mais forte,
de ordem superior. Considerando o que a história mostra do passado e o que
reserva para o futuro, a Pátria e a República podem ser episódios passageiros;
a própria cristandade, por mais desgastada que possa estar, possui duração muito
maior e dimensões muito mais grandiosas. O leitor poderá identificar o mesmo
impasse refletido nas crises da União Europeia, como a que acontece na Grécia,
em que o desejo de fortalecer as nações a partir da formação de um bloco comum
sucumbe diante de diferenças culturais e de dissonâncias políticas, entre
outros fatores. É preciso enfrentar o fato de que um projeto de uma grande
civilização é também um projeto de uma grande ficção – no sentido de uma “realidade imaginada” (como desenvolvido
por Harari em Sapiens: uma breve história
de humanidade), ou seja, da capacidade humana de criar abstrações
compartilhadas de grande eficácia social. Haverá disposição de enfrentar este
desafio? Os secularistas e ateístas, com sua obsessão pela verdade científica,
estarão dispostos a assumir tais premissas?
A ideia de que “o auge da felicidade humana reside na
submissão mais absoluta”, expressada num diálogo de Submissão, é tão contrária ao espírito ocidental, que se opõe
inclusive à própria literatura, de modo geral, e ao romance, em particular,
visto que este tem por base o conflito do indivíduo com um agente externo (o
destino, o Estado, a sociedade, etc); nesta perspectiva, a literatura romântica
ocidental não deixa de ser uma história da infelicidade. Como contraponto, um
interlocutor de François introduz A
história de O, famoso romance erótico francês, de cunho sadomasoquista, que
justificaria a relação entre submissão e pleno gozo da condição humana. Diante
desta perspectiva, o romance de Houellebecq não deixa de ser uma glosa irônica
sobre a tradição do romance; mais do que um anti-herói, François é um sabotador
do espírito inquieto ocidental, um modelo de resignação diante das crises da
modernidade e dos seus projetos políticos salvacionistas. No leque de valores
humanos cunhados ao longo da literatura europeia – o que inclui o solipsismo contemplativo
de Des Esseintes (o decadente protagonista de Às avessas) – o flerte de François com o islamismo tem o poder de
açular a sensibilidade ocidental por vias insólitas. Basta considerar, por
exemplo, a questão do adultério – tema canônico da literatura – sob a
perspectiva de um homem de meia-idade, nada atraente, diante da possibilidade
real e concreta de ter duas (ou mais) esposas – como uma bela e formosa jovem
de quinze anos, e uma zelosa mulher madura, com preciosos dotes culinários e
domésticos, por exemplo.
A grande lição do Islã seria a
aceitação da submissão? A felicidade na submissão? Inconformidade, indocilidade,
criticismo, revolta – seriam frutos de desejos e anseios infantilizados do
Ocidente, em oposição à maturidade da submissão? É bem conhecida a tese de que
a felicidade requer ilusões; de que não é possível ser feliz sendo lúcido e
conhecendo a verdade – drama geralmente vivenciado por indivíduos cultos e
intelectuais, como François, para os quais Hamlet não deixa de ser um
arquétipo. À parte o problema de definir no que consiste a felicidade, a
atitude de submissão surge como vetor de aceitação de uma grande ilusão (ou
ficção), que serve como âncora para estabilizar o indivíduo em algo pelo que
valha a pena viver, ou seja, em uma referência de felicidade.
O que permanece incomodando e
espicaçando o leitor de Submissão é a
resignação passiva de François – que se oferece como um incômodo reflexo do que
restaria de um indivíduo que fosse incapaz de se engajar nas mais arraigadas
ilusões ocidentais. Não se trata de niilismo, nem de cinismo, mas de uma
postura que reconhece, para além da crise da herança cultural das Luzes, a limitação
da própria condição humana, na sua luta inglória por conciliar o que há de
divino e o que há de animal no humano.
Sozinho diante da Virgem Negra de
Rocamadour (escultura medieval de Maria com o menino Jesus), François sente sua
prezada individualidade começar a se esvair – efeito que joga luz tanto sobre
as esperanças reprimidas do personagem, quanto sobre a possibilidade de uma
restauração da cristandade. A busca por uma religiosidade mística é um caminho
radicalmente solitário, que equivale ao mergulho na psique mais profunda do
indivíduo, mas que termina por conduzi-lo a noções que desembocam na percepção
da Unidade de tudo. François vacila diante do apelo do mistério, num silencioso
esforço por conciliar esperança e ceticismo.
De acordo com Myriam, François é
um homem de uma “honestidade anormal”,
que lhe impede de assumir os compromissos sociais corriqueiros e lhe empresta
um ar de alheamento e desinteresse. A crítica literária costuma definir os
personagens de Houellebecq como cínicos, mas a definição de Myriam parece mais
adequada. Sabemos que François não é completamente honesto – nem sempre diz o
que pensa – mas é suficientemente lúcido e independente para não encontrar uma
solução confortável para a sua angústia. De modo semelhante, o filósofo francês
Blaise Pascal (1623-1662) foi definido como “brutalmente honesto consigo mesmo” (Karen Armstrong em Uma história de Deus), assumindo uma
trajetória filosófica constantemente atravessada pela incerteza quanto aos
limites da razão e da existência de Deus, em plena era do Iluminismo. As luzes
sombrias e paradoxais de Pascal ajudam a revelar a obscuridade da personalidade
de François e sua dificuldade em ser compreendido. Curiosamente, dentre os Pensamentos de Pascal encontra-se um
intitulado Submissão (nº 268):
“É preciso saber duvidar quando necessário, afirmar quando necessário,
submeter-se quando necessário. Quem assim não faz não entende a força da razão.
Há os que pecam contra esses três princípios, ou afirmando tudo como
demonstrativo, por falta de conhecimentos em demonstrações; ou duvidando de
tudo, por não saberem quando é preciso submeter-se; ou submetendo-se a tudo,
por ignorarem quando é preciso julgar”.
Se confrontarmos François com a
reflexão de Pascal, poderemos identificar uma postura que procura compreender a
“força da razão”, diante de pessoas
religiosas mas sem fé (afirmando tudo como demonstrativo), como é o caso de
grande parte dos devotos; ou de ateístas militantes (que duvidam de tudo),
incapazes de perceber o caráter metafísico da verdade científica; ou de fanáticos
(que não julgam sua submissão), recusando-se a uma abertura filosófica à
dúvida. François sinaliza para a afirmação do pensamento pascaliano, que
reconhece na consciência de seus limites e fraquezas a única verdadeira
grandeza do homem.
Ampliando a reflexão, ainda mais
apropriado é o Pensamento nº 245: “Há
três meios de crer: a razão, o costume, a inspiração”. Crer pela razão é já
um fardo que o Ocidente mal consegue carregar; não é por acaso que tantos
procuram espiritualidades alternativas, e que o pensamento cartesiano se mostre
insuficiente e limitado; crer pelo costume é prática cada vez mais dilacerada
pelas dinâmicas sociais contemporâneas, a cada nova geração, por motivos de
amplo conhecimento; resta a inspiração – não foi a inspiração que arrastou
Huysmans à fé, através da estética católica? Não é a inspiração que sugere o
caráter transcendente da arte, da música, da pintura, da poesia, da escultura?
Não é este o apelo fundamental que atravessa François, opondo a força mística
de uma imagem sagrada ao pragmatismo das adesões em massa às religiões? O
próprio Pascal, assediado pelo costume (a família e o meio social) e pela razão
(a célebre “aposta” e os argumentos científicos), não se reconcilia com a fé
somente a partir da inspiração?
Se Submissão for a história de um homem em busca da inspiração –
embora ele seja de uma “honestidade
anormal” – é pertinente resgatar ainda outro pensamento de Pascal (nº 257):
“Há apenas três espécies de pessoas: umas servem a Deus, tendo-o
encontrado; outras aplicam-se em buscá-lo, não o tendo achado; outras, enfim,
vivem sem o procurar e sem o ter encontrado. As primeiras são sensatas e
felizes, as últimas, loucas e desgraçadas, as do meio infelizes e sensatas”.
Hamlet, Pascal, Des Esseintes,
François: quem admitirá ser infeliz e sensato? Que ilusões serão admitidas para
que se acredite na possibilidade da felicidade? Não há conclusões fáceis em Submissão – sintomaticamente, no último
capítulo o tempo verbal muda para futuro do pretérito. Se Houellebecq provoca
as questões, resta ao leitor posicionar-se, diante de uma perspectiva de futuro
que torna mais agudas e complexas as relações entre individualidade, solidão,
amor, verdade e felicidade. E o leitor, o que busca em Submissão? Encontra o que busca? Submete-se ao que encontra?
Se Pascal foi o primeiro homem
moderno – por questionar a existência de Deus de um modo radical, como afirma Armstrong
– François pode ser o último, o germe de uma ocidentalidade que terá de se
refazer diante das crises, fundamentando-se em convicções quando tudo parecem
ser ilusões; querendo acreditar, mas sendo incapaz de crer. O século XXI poderá
ser o primeiro em que a maior parte da humanidade confronte-se com este impasse
existencial.
por Lucas Petry Bender