sábado, 30 de abril de 2011

As diferentes afinações de um mesmo instrumento

O encontro ora ruidoso ora harmônico entre o pensamento religioso e o filosófico rende reflexões interessantes. No artigo abaixo, publicado hoje no Notícias IHU Unisinos, religião e filosofia são postas em discussão mediante a relação com um problema concreto da contemporaneidade - neste caso, a vida dita vegetativa e a angústia dos familiares diante da premência do tempo que passa.


A alma em forma de violão

A circunstância verdadeiramente embaraçosa é que a metáfora da alma como as cordas de um violão, utilizada recentemente por Bento XVI, serve, na sua versão original, para demonstrar que a alma não é imortal.
A análise é da filósofa italiana Franca D'Agostini, professora do Politécnico de Turim e da Università del Piemonte Orientale. É autora, em português, de Analíticos e Continentais (Ed. Unisinos, 2002) e de Lógica do Niilismo: Dialética, Diferença e Recursividade (Ed. Unisinos, 2002). O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 28-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mas o Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, acredita na imortalidade da alma? Provavelmente sim, visto o ofício que faz, mas, à luz das suas recentes declarações, há alguma razão, senão para duvidar, pelo menos para ficar perplexos. Refiro-me à metáfora do violão com as cordas despedaçadas utilizada por ele para explicar à mãe de Francesco (em coma desde 2009) que a alma do seu filho ainda existe, embora tácita, no corpo em estado vegetativo. "A alma não pode tocar", explica o Papa, mas "continua presente".
É uma metáfora antiga e figura sobretudo no Fédon platônico: ela é apresentada por Símias, em uma célebre discussão sobre a imortalidade da alma. Mas a circunstância verdadeiramente embaraçosa é que a metáfora serve para demonstrar que a alma não é imortal. Diz Símias: de acordo, supondo que a alma exista, e que seja algo imaterial que está ligado ao nosso corpo, ela poderia ser como a música de uma lira, que certamente é imaterial, e é algo "invisível, incorpóreo, sumamente belo"; mas "suponhamos que alguém quebre a lira e corte ou arrebente suas cordas": nesse caso, a alma cessaria de existir.
O argumento é verdadeiramente muito forte: admite-se que existe na vida humana uma realidade espiritual, mas unicamente como resultado e fruto de fatos materiais, de reações químicas e físicas. A ideia do espírito como algo que sobrevém inesperadamente sobre o corpo é uma das grandes linhas-guia do materialismo, de Símias a Gassendi, e hoje a David Armstrong ou Jaegwon Kim. O fato de o Papa usar a mesma metáfora dá o que pensar.
Mas o aspecto talvez ainda mais interessante e embaraçoso da questão é que Sócrates refuta a hipótese de Símias servindo-se da tese da pré-existência da alma ao corpo, uma tese que os socráticos consideram indiscutível (sendo a base da teoria do conhecimento como reminiscência) e que a metafísica católica, ao contrário, não pode aceitar de modo algum.
Diz Sócrates: se a alma é o incorpóreo som do violão (da lira) que permanece tácito quando o violão (lira) tem as cordas arrebentadas, certamente não podes admitir que a alma exista em uma vida anterior, antes do corpo. Sim, reconhece sabiamente Símias. Então "qual raciocínio preferes", perguntou Sócrates: o que demonstra a pré-existência da alma ou o que demonstra que a alma é a "harmonia", ou seja, a música, fruto do corpo? Símias não tem dúvida: o primeiro é preferível.
Qual poderia ser, ao invés, a resposta do Papa? O que ele prefere: a ideia da transmigração das almas, ou a da alma que morre com o corpo, nada mais sendo do que o som deste último? Do ponto de vista católico, a alternativa é sem saída: uma via é pior do que a outra.
Talvez, seria melhor evitar o uso dessas metáforas, que revelam toda a fragilidade da filosofia oficial do catolicismo e, além disso, não consolam muito (não tenho a menor ideia de como a mãe de Francesco pôde se sentir tranquilizada com aquilo que lhe disseram: as cordas neste estado estão arrebentadas, e poderiam tocar, mas não tocam).
Muito sensatamente, Símias reconhece que o raciocínio sobre a lira das cordas arrebentadas lhe viera à mente "por parecer-me verossímil e algum tanto conveniente", e argumentos desse tipo "são vãos", servem só para enganar "os demais", com a luminosidade das imagens, mas levam sistematicamente a teses falsas e discutíveis. Ou, talvez, podemos dizer: revelam mais do que o que se gostaria de revelar.

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Não estou muito seguro quanto à compreensão da autora do artigo com relação à metáfora do Papa, já que este me parece mais consciente da ressonância e suas reminiscências sobre o instrumento do que propriamente da necessidade de a corda estar inteira. Talvez ele tenha se expressado no sentido de que a perpetuação de uma vibração da corda na memória - ou a lembrança que os pais têm da vida ativa do filho - sinalize a perpetuação da alma, inscrevendo-a no corpo do próprio filho.

Seja como for, me sendo permitida uma interferência, eu colocaria em relação também a física da música, tão bem revelada no livro O Som e o Sentido. A música, ou antes o som, não deixa de ser também uma manifestação plástica, embora invisível; é física, concreta, na medida em que nasce de vibrações que se expandem pelo ar (lembremos que o ar também não é mera abstração, mas combinação de gases).

"Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos". Sendo assim, talvez seja mais apropriado pensar que é o sentido -formado na ponta final de um processo material - que ultrapassa a realidade física para atingir algo que pode ser comparado à realidade espiritual, ou à alma. Mas o som em si é um processo físico e material, e o apito para cães indica isso com bastante evidência - a menos que se pense que o homo sapiens possui uma alma elevada que só lhe permite distinguir sons que lhe sejam reveladores.

"Toda a nossa relação com os universos sonoros e a música passa por certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos, com os quais jogamos ao ler o tempo e o som". Bem, a partir daí a discussão vai longe, e todo este blog é um reflexo mais ou menos nítido destas variações sobre o ritmo de nossa percepção.


Fiquem em compania do som da flauta japonesa:


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