quarta-feira, 25 de maio de 2011

Délibáb



Eu ainda não conheci uma mulher que fosse como uma música, como uma boa música. Uma milonga do Ramil, por exemplo, é misteriosa, insinuante, obscura e um tanto inacessível quando a conhecemos. Na verdade, ela não nos desperta os instintos mais básicos e imediatos logo nas primeiras aproximações. Mas, se se tem a sorte ou a persistência de voltar a ela, é como revisitar uma miragem - ainda é ela, mas já é outra, ou nunca foi isso? É um reflexo invertido e vacilante, parece uma ilusão mais viva. Volta-se à milonga, muitas vezes mais, com uma fome encantada de luz e sombra: a completa nitidez é mágica. Já tenho ela, a milonga, aqui dentro de mim, cravada em raízes de companheira tão alegre e tão bonita e tão sólida e tão verdadeira e tão viva, como se fosse umbu frondoso em campo aberto. E é só uma milonga, ou uma sequencia delas.

Porque se fosse mulher, seria tudo ao contrário. Primeiro o encantamento, tão arrebatador quanto efêmero, com os nervos à flor da pele. Depois a pele, já sem flor, virando casca dos dias e das noites iguais. Recém o copo transbordou e já parece vazio; recém o corpo transgrediu e já parece que esgotou. Volta-se a ela, muitas vezes mais, e parece cada vez mais tristemente nítida - como se fosse o vinco de uma velha roupa colorida -, e parece cada vez mais melancólica miragem - como se fosse uma promessa de nossos pais. Termina por se tornar inacessível e, por sorte ou persistência, despertar ainda um único instinto: o ciúme. E é só uma mulher, ou uma sequencia delas.

P.S.: eventuais leitoras não devem se ofender. Há muito humor neste textículo - chamem-me de inglês, mas há muito humor sim. Basta de mulher-samambaia, mulher-melancia, mulher-maravilha; eu quero é mulhermilonga.

P.S.1: no meu mundo ideal não há mulheres. Elas não existem e não fazem falta alguma. Tampouco há homens. O que há é sereias encantadas e semideuses tocando milongas. Coitado do homo-sapiens, tão ultrapassado pela imaginação!

P.S.2: existe mulher-sinfonia? Mulher-quarteto-de-cordas, mulher-concerto, mulher-suíte, mulher-cantata? E a mulher-samba, que dizem ser tão comum e eu também não conheço? Porque se existem, eu quero; uma de cada, por favor. E pode colocar na conta do homo-sapiens, que desistiu das sereias encantadas.

P.S.3: que disco deslumbrante. Na ordem correta: link para informações, link para o crime e link para a compra.

3 comentários:

  1. Faz uns dias que tento arrumar um tempinho pra vir comentar sobre o Nada e agora parece que não tenho mais nada a comentar. Mas insisto. Em forma de espelho, se você não se importa...

    PS. Logo trago o link...

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  2. Brincando de escrever diálogos: http://borboletasnosolhos.blogspot.com/2011/05/menina-que-roubava-posts-v.html

    espero que goste (ou, pelo menos, não se zangue)

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  3. Se, remotamente, fosse possível traduzir este texto, então ele deveria sê-lo para todas (todas, sem exceção) línguas do Universo (quiçá estelar).

    Como não o é, resta a nós, usuários da língua portuguesa escrita, termos o privilégio de saboreá-lo.

    Cláudio

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