Eu tenho lembranças assombrosas de um ancestral antiquíssimo, que resolveu se arrastar para fora da água e enfrentar todo o peso da tirana lei da gravidade.
Subitamente seus instintos ficaram sem valor. A partir de então deveria andar com os pés e carregar a si mesmo, quando antes era levado pela água: havia um terrível peso sobre ele.
Para as funções mais simples sentia-se canhestro, nesse novo mundo não mais possuía os seus velhos guias, nem os impulsos reguladores e inconscientemente certeiros - estava reduzido, o infeliz, a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos.
Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de desgraça, um mal-estar tão plúmbeo - e além disso os velhos instintos não cessaram repentinamente de fazer suas exigências!
Mas era difícil, raramente possível, lhes dar satisfação: no essencial tiveram de buscar gratificações novas e, digamos, subterrâneas.
Toda vez que nasce um homem, expulso do útero, essa maldição revive.
E o irresistível canto das sereias é o lamento antiquíssimo daquelas a quem um dia abandonamos.
Estúpido, esse nosso ancestral.
Trechos em itálico extraídos de "A Genealogia da Moral", de Nietzsche, trad. Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2009, pág. 67
Parabéns pela poesia visual e pelo pensamento instigador. Foi bom ler e ver esse post. Abraço
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