quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Crônicas da Feira do Livro de Novo Hamburgo

Não são contos, nem delírios. São crônicas. Duas mal arranjadas crônicas sobre a Feira do Livro de Novo Hamburgo, que encerrou-se neste fim de semana.

Butão, 2011 - foto de Kevin Frayer


   Sentei numa das poucas cadeiras de plástico ainda vazias para ver o MV Bill. Quando ele apareceu no palco já estava lotada a praça. Fiquei olhando pra todas aquelas cabeças indistintas enquanto o cara se sentava na poltrona do palco, de um jeito desengonçado e sereno. O cara é grande, forte. Foi possível ver algumas tatuagens no antebraço. Deve ter uns dois metros de altura, pensei. Acho que ele precisa mandar fazer especialmente pra ele aqueles panos largões que ele veste. Ele começou a falar, respondendo as perguntas inócuas do entrevistador. Acho que ele nem precisava de microfone, pensei, tão grave e retumbante é a sua voz.

Reparei numa gostosa duas fileiras à frente. Tava cheio de gostosas, mas aquela estava numa posição conveniente ao meu campo de visão. E tinha peitos grandes, fartos. Que nega bem gostosa, pensei. Cada vez que ela torcia o corpo pro lado eu descobria mais uma delícia de prazer no seu perfil. A boca carnuda me deixou fascinado. Isso é uma nega nega mesmo, pensei. Pele preta mesmo, ainda mais escura que a do MV Bill. Tava cheio de negros e negras na platéia.

A minha nega tava ocupadíssima com o seu aparelho de telefone celular - ou seja lá o que for aquele tecladinho reluzente cheio de botõezinhos. As unhas impecavelmente vermelhas trabalhavam incessantemente naquele aparelhinho. Mandando mensagens ou e-mails, pensei. Talvez jogando algum daqueles passatempos bestas? De qualquer modo, não parecia ser nada muito importante, a despeito da atenção devotada.

Reparei também que ela estava vestida com capricho, bastante maquiada, com brilhos que cintilavam nas bochecas, nos lábios, nas unhas. O cabelo reluzia um negrume cacheado que devia ser muito cheiroso. Enormes argolas douradas pendiam de cada lado daquele pescoço que eu queria morder e beijar.

O MV Bill já estava encerrando sua fala. Recitava uma rima fácil demais pro meu gosto. Algo com falta de ética / droga sintética / polícia energética. As cabeças indistintas pareciam gostar, talvez pelo tal impacto social da mensagem. Mas a minha nega continuava voltada apenas às mensagens do celular. Mascava chiclé displicentemente e tinha ares de entediada.

Quando o MV Bill levantou pra sair, as luzes foram intensificadas, subiu o som da vinheta da Feira do Livro, estouraram aplausos e assovios, e a minha nega finalmente olhou pro palco, levantou também, deu um jeito de bater palmas sem largar o celular, e gritou: - Gostosoooooo!

Que nega bem gostosa, aquela.

11 de setembro de 2001 - foto de Larry Towell


   Cheguei cedo na praça pra ver o Arnaldo Antunes. Ainda tinha muitos lugares vagos. Escolhi uma cadeira próxima ao palco. Fiquei pensando nos motivos que me levavam até ali. O pouco que conheço da obra do Arnaldo Antunes não me entusiasma muito. A pequena multidão cult hamburguense tampouco me atrai. Mas era uma agradável noite de sábado e eu estava entediado.

Ainda faltava um bom tanto pra começar o bate-papo com o cara, quando chega uma família formada por mãe, filho e cachorro, e sentam-se bem à minha frente. O cachorro, no colo deles, deixava a língua escorrer pra fora da bocarra e me olhava inquieto, inquiridor. Às vezes dava um latido e precisava ser firmemente contido pelos primatas avançados que supostamente queriam ver e ouvir Arnaldo Antunes.

Pensei em sair, trocar de lugar, ir embora. Fiquei (pois não costumo transformar em ação o que formulo em pensamento; sou um primata pouco ativo). Fiquei pra ver o Arnaldo Antunes, embora a atração do momento fosse o cão na platéia. Platéia que se mostrava tão terna quanto admirada com a presença do canídeo ali, em território supostamente primata.

Primatas fêmeas, das mais esbeltas e charmosas e atraentes, multiplicavam-se entre a platéia. Eu e também o cão nos sentíamos deslocados. Ele por ser o único da espécie. Eu por não saber o porquê de eu estar ali, nem o porquê de eu querer ver o Arnaldo Antunes. Me senti melhor quando percebi que havia grande quantidade de belas mulheres no local. Fiquei.

Fiquei pensando no porquê de aquele cachorro estar ali, enquanto o Arnaldo Antunes respondia as perguntas banais do entrevistador. Reparei que a atenção da mãe e do filho voltava-se quase completamente ao cachorro: vigiavam, continham, admoestavam, acariciavam, bajulavam, repreendiam.

Acho que o cão não queria estar ali. Acho que a mãe e o filho não queriam estar ali. Acho que eu não queria estar ali.

Acho que Arnaldo Antunes não queria estar ali.

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