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| arte de Lucian Freud (Retrato de John Deakin) |
Sinopse - Escrito em formato de diário ao longo de um ano, narra o cotidiano de Santomé, funcionário contábil de uma empresa comercial em Montevidéu, viúvo há mais de vinte anos, pai de três filhos adultos com quem não tem um relacionamento próximo. Prestes a se aposentar ao completar 50 anos, apaixona-se e vive um romance com Avellaneda, jovem discreta recém contratada como sua subordinada no escritório.
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"Voltei para casa, dormi a sesta e me levantei pesado, de mau humor. Tomei uns mates, mas estavam amargos, e me aborreci. Então me vesti e fui outra vez ao Centro. Desta vez me meti num café; consegui uma mesa junto à janela. Em um lapso de uma hora e 15, passaram exatamente 35 mulheres interessantes. Para me entreter, fiz uma estatística sobre o que mais me agradava em cada uma. Anotei tudo no guardanapo de papel. Este é o resultado. De duas, gostei da cara; de quatro, do cabelo; de seis, do busto; de oito, das pernas; de 15, do traseiro. Ampla vitória dos traseiros." (pág. 26)
1) Adquiri meu exemplar num sebo de Porto Alegre e iniciei a leitura minutos depois, num banco da Redenção à sombra. Inevitavelmente, às vezes me desconcentrava reparando nas mulheres que passavam. Tem algo de atroz nesse olhar masculino, é verdade, mas não deve ser levado tão a sério. Não anotei os números, mas senti que aí estava selado o meu pacto com o personagem. O trecho me trouxe imediatamente à lembrança o soberbo filme Amor à tarde (Éric Rohmer, 1972), cujo personagem observa as mulheres que passam através da janela de um restaurante. Aliás, tanto o filme quanto o livro de Benedetti têm um marcado caráter de observação urbana, o que voltarei a destacar adiante.
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"Uma das coisas mais agradáveis da vida: ver como o sol se filtra por entre as folhas." (pág. 50)
2) Um dos maiores encantos que o leitor de A trégua encontra é deparar-se com frases assim, simples, verdadeiras, honestas, que Santomé comunica sem afetação. Eu diria (agora sim vai soar afetado, paciência) que é não só uma das coisas mais agradáveis da vida, mas um dos fenômenos estéticos mais deslumbrantes - ai do olho que já o banalizou! Dessa vez, o filme que se faz lembrar é Dias Perfeitos (Wim Wenders, 2023), com a atenção especial que dá ao komorebi, seja como agradável situação da vida cotidiana, seja como fonte de inspiração estética principal para as fotografias do personagem.
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"Minha liberdade é outro nome para minha inércia. Dormir hoje com uma, amanhã com outra; bom, quero dizer, basta uma vez por semana. O que a natureza pede, e mais nada; é o mesmo que comer, o mesmo que tomar banho, o mesmo que fazer as necessidades. Com Isabel era diferente, porque havia uma espécie de comunhão e, quando fazíamos amor, parecia que cada duro osso meu correspondia a um brando côncavo dela, que cada impulso meu se encontrava matematicamente com seu eco receptor. Sob medida." (pág. 59)
3) Isabel é a falecida esposa de Santomé. O quão contundente é esse contraste entre a "comunhão" erótica ("correspondência" / "côncavo" / "eco") de outrora e a "inércia" (meramente fazer as necessidades) de hoje (e da perspectiva do amanhã). Ainda mais duro será ao final, por motivos que é melhor não explicitar para não frustrar a surpresa de eventuais novos leitores.
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"Comecei a 'vê-la' em cada mulher que se aproximava pela Veinticinco. Àquela altura, não me importava tanto o fato de não conseguir reconhecer, nesta ou naquela figura, um só detalhe que me lembrasse a dela. Eu a 'via' do mesmo jeito. Uma espécie de jogo mágico (ou idiota, tudo depende do ponto de vista). Somente quando a mulher se encontrava a poucos passos era que eu efetuava um brusco retrocesso mental e deixava de vê-la, substituía a imagem desejada pela indesejável realidade. Até que, de repente, fez-se o milagre. Uma moça apareceu na esquina e, de imediato, nela eu vi Avellaneda, a imagem de Avellaneda. Mas, quando quis efetuar o esperado retrocesso, ocorreu que a realidade também era Avellaneda." (pág. 68-69)
4) A obsessão pela figura da mulher por quem se está apaixonado, que de fato provoca frequentes "miragens" urbanas desse tipo, é mesmo algo tão mágico quanto idiota. Aqui parece estar presente o espírito de O túnel (1948), estupenda novela de Ernesto Sabato. Além disso, é talvez nesse trecho que começa a se delinear uma questão essencial do personagem, nessa dualidade entre o "milagre" e a "realidade", que vai marcar a sua trajetória com crescentes dúvidas e reflexões sobre a presença/ausência de Deus, como termo final de tudo o que lhe é despertado através do amor, do erotismo, da solidão, da decrepitude, do tempo, do ócio, da finitude.
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"Eu me levantei, tropecei na cadeira, minha colherinha de café resvalou da mesa com um escândalo que mais parecia provir de uma concha de sopa. Os garçons olharam. Ela se sentou. Recolhi a colherinha, mas, antes de conseguir me sentar, enganchei o paletó naquele maldito rebordo que as cadeiras têm no espaldar. Em meu ensaio geral dessa desejada entrevista, não havia levado em conta uma encenação tão movimentada. 'Parece que eu o assustei', disse ela, rindo com franqueza. 'Bem, um pouco, sim', confessei, e isso me salvou. Estava recuperada a naturalidade." (pág. 71)
5) Fora de contexto, é claro que o humor ao mesmo tempo comedido e espalhafatoso da cena do primeiro encontro (fora do ambiente de trabalho) entre Santomé e Avellaneda perde boa parte da graça. Lendo em público - voltei à Redenção por mais alguns dias -, foi necessário mobilizar todas as minhas capacidades musculares faciais e abdominais para tentar parar de rir, sem muito sucesso. E o medo de parecer louco? aos olhos de toda aquela gente que corre, que conduz cães, que tira selfies, "ávidos cultores da realidade" (obrigado, Philip Roth).
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| Steven J. Levin |
"Afinal, é um alívio voltar a beijar na boca, e com confiança, e com carinho. (...) Nem ela nem eu o dissemos, mas depois desta jornada há uma coisa que ficou estabelecida. Amanhã pensarei. Agora estou cansado. Também poderia dizer: feliz. Mas estou por demais alerta para me sentir totalmente feliz. Alerta ante mim mesmo, ante a sorte, ante esse único futuro tangível que se chama amanhã. Alerta, ou seja: desconfiado." (pág. 87)
6) Esse tipo de desconfiança perante a própria felicidade não é um mal que nós, leitores de ficção, sabemos reconhecer até no escuro?
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"Talvez eu seja um maníaco da equidistância. Em cada problema que se apresenta, nunca me sinto atraído pelas soluções extremas. É possível que essa seja a raiz da minha frustração. Uma coisa é evidente: se, por um lado, as atitudes extremas provocam entusiasmo, arrastam os outros, são indícios de vigor, por outro, as atitudes equilibradas são em geral incômodas, às vezes desagradáveis, e quase nunca parecem heroicas. Em geral, precisa-se de bastante coragem (um tipo muito especial de coragem) para manter-se em equilíbrio, mas não se pode evitar que aos outros isso pareça uma demonstração de covardia. O equilíbrio é tedioso, ainda por cima. E o tédio, hoje em dia, é uma grande desvantagem que em geral as pessoas não perdoam." (pág. 87)
7) Além de definir um traço essencial do personagem, com grande potencial de identificação com o leitor, é um olhar franco sobre o que o torna um personagem aparentemente desprovido de maiores interesses, mas que oculta uma riqueza interior complexa, pois avessa às soluções simplistas, ao engajamento automático, às pressões sociais embrutecedoras ou sentimentalistas (o que traz à lembrança Stoner, o personagem-título do romance de John Williams). Talvez Santomé nos conquiste sobretudo por essa lucidez de um indivíduo que, embora sinta-se frustrado por não aderir à fuga desesperada que muitos empreendem de si próprios, ainda assim reconhece o valor do seu tipo "muito especial de coragem"; e antes que essa situação eventualmente favorecesse o desenvolvimento de ressentimentos insolúveis contra tudo e contra todos, surge Avellaneda com sua coragem não menos especial de reconhecer o valor desse "equilíbrio tedioso". Algo que me deixa perplexo e decepcionado é ver como muitas resenhas sobre o livro reproduzem o lugar-comum falso, estúpido e mesquinho de que a vida de Santomé é meramente monótona, desprovida de sentido, sem nenhuma graça - de fato, não perdoam o tédio; esses resenhistas demonstram, assim, que sequer são capazes de compreender o simples e profundo valor existencial, por exemplo, de "uma das coisas mais agradáveis da vida: ver como o sol se filtra por entre as folhas". Santomé está pleno de razão: precisa-se de bastante coragem para manter-se em equilíbrio. Onde estão as Avellanedas?
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"Eu me senti decepcionado, imbecil, compreensivo." (pág. 99)
8) Surpreendente simultaneidade de adjetivos, que reforça o que há de tragicômico na personalidade de Santomé, abordado no tópico anterior. Não posso deixar de notar a recorrente impressão pessoal de que, sobretudo no Brasil do século XXI, ser compreensivo praticamente equivale a um atestado de imbecilidade; e, no entanto, é a única postura que pode verdadeiramente nos livrar de uma imbecilidade ainda maior, mais completa e mais perversa. E embora o trecho tenha um contexto bem mais restrito, penso que o livro de Benedetti estimula reflexões nesse sentido.
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"Sim, o trabalho amordaça a confiança. Mas também existe a galhofa. Todos somos especialistas em galhofa. A disponibilidade de interesse ante o próximo tem de ser gasta de algum modo; do contrário, ela se instala e sobrevém a claustrofobia, a neurastenia, sei lá. Já que não temos a coragem suficiente, a franqueza suficiente para nos interessarmos amistosamente pelo próximo (não o próximo nebuloso, bíblico, sem rosto, mas o próximo com nome e sobrenome, o próximo mais próximo, aquele que escreve na mesa em frente à minha e me estende o cálculo de juros para que eu o revise e coloque minha rubrica de aprovação), já que renunciamos voluntariamente à amizade, bem, pois então vamos nos interessar galhofeiramente por esse vizinho que, ao longo de oito horas, está sempre vulnerável. Além disso, a galhofa proporciona uma espécie de solidariedade. Hoje o candidato é este, amanhã é aquele, depois de amanhã serei eu. O galhofado maldiz em silêncio, mas logo se resigna, sabe que isso é só uma parte do jogo, que no futuro próximo, talvez dentro de uma hora ou duas, poderá escolher a forma de desforra que melhor coincida com sua vocação. Os galhofeiros, por sua vez, sentem-se solidários, entusiastas, esfuziantes. A cada vez que um deles acrescenta à galhofa um condimento, os outros festejam, trocam sinais, sentem-se cheios de cumplicidade, só falta que se abracem e gritem hurras. E que alívio é rir, mesmo quando é preciso prender o riso, porque lá no fundo assomou o gerente com sua cara de melancia! Que desforra contra a rotina, contra a papelada, contra essa condenação que significa ficar oito horas enredado em algo que não importa, em algo que faz incharem as contas bancárias desses inúteis que pecam pelo mero fato de viver, de deixar-se viver, desses ocos que acreditam em Deus só porque ignoram que há muito tempo Deus deixou de acreditar neles. A galhofa e o trabalho. Em que diferem, afinal? E que trabalho nos dá a galhofa, que cansaço! E que galhofa é este trabalho, que piada de mau gosto!" (pág. 108-109)
9) Verdadeira fenomenologia da galhofa (da gozação entre colegas de escritório, em português claro e raso). Nada a acrescentar; apenas confirmo a sua precisão, como membro desse zoológico.
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| Anne Magill |
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"Fui até a cozinha, acendi o fogareiro e coloquei água para esquentar. Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia de cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações." (pág. 111-112)
10) Os momentos mais sublimes da vida - como dos livros - não são sempre assim, silentes, imersos na completude do não-dito? O romance luminoso, do outro Mario uruguaio (o Levrero), tem semelhantes ápices efêmeros e venturosos - penso também em Salinger, mestre do inefável. E poucas coisas são tão inspiradoras dessa forma de felicidade algo melancólica (no sentido mais doce e suave da palavra) quanto observar a chuva. Guardo comigo - e procuro praticar - a cena do filme Assassinos da Lua das Flores (Martin Scorsese, 2023), aquela em que os futuros cônjuges recém estão se conhecendo, flertando durante um jantar a sós, quando começa um temporal; ele (Di Caprio) corre e se agita para fechar as janelas, enquanto ela (Lily Gladstone), que é de origem indígena, pede que ele relaxe, que apenas fique sentado quieto, escutando a chuva, reverenciando essa manifestação da natureza; ele ainda tenta puxar assunto, desconfortável com o silêncio, mas ela pede de novo que apenas aprecie o momento em quietude.
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"Assim com a praia vazia, as ondas se tornam imponentes, governam sozinhas a paisagem. Nesse sentido, eu me reconheço lamentavelmente dócil, maleável. Vejo esse mar implacável e desolado, tão orgulhoso de sua espuma e de sua coragem, levemente salpicado de gaivotas ingênuas, quase irreais, e de imediato me refugio numa irresponsável admiração." (pág. 113)
11) Provavelmente o trecho de prosa mais lírica do livro. Sai um pouco do tom do personagem, mas reforça a ideia de que ele possui uma interioridade mais rica e complexa do que aparenta (e do que ele mesmo supõe, já que se trata de um diário). Na sequência, vem a descrição de um diálogo com Avellaneda sobre a dúvida na existência de Deus (e em como defini-lo), questão que vai ficando progressivamente mais premente à medida que a narrativa avança.
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"Deus, se é que existe, deve estar lá em cima admirado. Avellaneda (oh, ela existe) está agora cá embaixo, abrindo os olhos." (pág.117)
"Por isso prefiro a assustadora franqueza do Palacio Salvo, porque ele sempre foi horroroso, nunca nos enganou, porque se instalou aqui, no ponto mais concorrido da cidade, e há trinta anos nos obriga a todos, naturais e estrangeiros, a erguermos os olhos à sua feiura. Para ver os jornais, é preciso baixar os olhos." (pág. 127)
12) Aqui traço um paralelo entre dois trechos distintos, ainda que percam parte do sentido fora de contexto. Além de apreciar o contraste entre o Deus distante que observa de cima e a mulher amada na cama cá embaixo, gosto da ressonância do mesmo tropo acima/abaixo no trecho seguinte, com o Palacio Salvo como uma entidade superior, e a cotidianidade dos jornais lidos aqui embaixo na mesa do café - com ênfase nos "olhos", a encerrar os dois períodos e as duas entradas do diário. É um tropo narrativo que ilumina a postura do personagem diante dos seus dilemas e angústias, procurando conciliar a mundanidade terrena e algum sentido transcendente.
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"Porém, mais do que qualquer outra coisa, o que nos entretém é conversar, falar de nós, contar um ao outro toda essa zona de nossas vidas que se situa antes do Nosso Assunto. Não há diversão, não há espetáculo que possa substituir o que desfrutamos nesse exercício de sinceridade, de franqueza. (...) nestes diálogos francos com Avellaneda, eu me vi pronunciando palavras que pareciam ainda mais sinceras do que meus pensamentos. É possível isso?" (pág. 133)
13) Eu me pergunto: é possível isso? Tudo isso que está aí descrito?
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"Eu penso por minha conta. Mas, mesmo pensando por minha conta, poderia desconfiar do ócio, sempre que o ócio fosse uma simples variante da solidão; como poderia ser, no meu futuro de alguns meses atrás, antes de Avellaneda aparecer. Com ela instalada na minha existência, porém, já não haverá solidão. Isto é: tomara que não haja. Convém ser mais modesto, mais modesto. Não diante dos outros, isso não importa. Convém ser mais modesto quando o sujeito se enfrenta, quando se confessa a si mesmo, quando se aproxima de sua verdade extrema, que pode até chegar a ser mais decisiva do que a voz da consciência, porque esta sofre de afonias, de rouquidões imprevistas, que com frequência a impedem de ser audível. Agora já sei que minha solidão era um horrível fantasma, sei que a simples presença de Avellaneda bastou para espantá-la, mas sei também que ela não morreu, que deve estar juntando forças em algum porão imundo, em algum arrabalde da minha rotina. Por isso, só por isso, abro mão da minha suficiência e me limito a dizer: tomara." (pág. 139)
14) Mais uma demonstração de que a consciência do personagem tem consistência invulgar. O trecho se torna especialmente doloroso na releitura.
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| Tom Shropshire |
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"(...) formam para si uma espécie de casca de orgulho, uma embalagem repugnante, uma sólida hipocrisia, mas no fundo são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem a mais horrível variante da solidão: a solidão daquele que nem sequer tem a si mesmo." (pág. 144)
15) A lucidez ácida de Santomé encontra repouso naquilo que nós, leitores, aspiramos: ter a nós mesmos - coisa que a poesia e a literatura de ficção nos ensinam, nos inspiram, nos desafiam. Harold Bloom tem muitas frases certeiras a esse respeito, e aqui vão três delas: "A recepção da força estética nos possibilita aprender a falar a nós mesmos e a suportar a nós mesmos." / "Esse leitor não lê pelo prazer fácil ou para expiar alguma culpa social, mas para ampliar uma existência solitária." / "Lemos, penso eu, para sanar a solidão, embora, na prática, quanto melhor lemos, mais solitários ficamos."
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"Quando um indivíduo permanece muito tempo sozinho, quando se passam anos e anos sem que o diálogo vivificante e investigativo o estimule a levar essa modesta civilização da alma, que se chama lucidez, até as zonas mais intrincadas do instinto, até essas terras realmente virgens, inexploradas, dos desejos, dos sentimentos, das repulsas, quando essa solidão se transforma em rotina, ele vai perdendo inexoravelmente a capacidade de sentir-se sacudido, de sentir-se viver." (pág. 144-145)
16) Que achado, esta definição de lucidez: "modesta civilização da alma". Espécie de contraponto do tópico anterior, aqui Santomé fala de si mesmo. Como ele não é um leitor (há menção apenas da compra de um livro e de leitura de revistas), posso apenas acrescentar que os grandes livros de ficção (e a grande arte, a poesia lato sensu) têm justamente a capacidade de sacudir, de despertar, de avivar os pontos sensíveis da vida - foi a leitura de A trégua, para citar apenas um exemplo, que me inspirou a concretamente enfrentar uma situação que vinha me perturbando -, o que não necessariamente impede a ocorrência do que ele descreve (sem falar que existe o perigo de romantizar falsamente a vida a partir de leituras ruins, ao modo Madame Bovary). Lembro agora do entusiasmo de Natalia Ginzburg em um dos ensaios de Não me pergunte jamais: "não lembrava mais o que era um romance vivo. Não lembrava quanta vida nos agrega e como de repente ele pode, com sua presença viva, arrancar ao mesmo tempo nossos trajes de luto e nossa íntima e lúgubre indiferença. (...) os verdadeiros romances podem milagrosamente nos devolver o amor pela vida e a sensação concreta do que queremos da vida. Os verdadeiros romances têm o poder de nos livrar da covardia, da letargia e da submissão às ideias coletivas, aos contágios e aos pesadelos que respiramos no ar. Os verdadeiros romances têm o poder de nos conduzir, repentinamente, ao coração do real". E isso ocorre menos pelo que é narrado, e mais por assumirmos tão completamente outra perspectiva, por adotarmos tão profundamente outra subjetividade, que nosso olhar assim modificado lança uma luz diferente sobre tudo.
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"(...) ver passar a Gente e esquadrinhar seus rostos, reconhecer aqui e ali expressões de felicidade e de amargura, ver como se precipitam todos rumo aos seus destinos, em insaciada turbulência, em esplêndida azáfama, e dar-me conta de como avançam, inconscientes de sua brevidade, de sua insignificância, de sua vida sem reservas, sem jamais se sentirem encurralados, sem admitir que estão encurralados. (...) Creio que nesse momento afirmou-se definitivamente em mim uma convicção: eu sou deste lugar, desta cidade. (...) Esse que passa (o de sobretudo comprido, orelha de abano, passo capenga e raivoso), esse é meu semelhante. Ainda ignora que eu existo, mas um dia me verá de frente, de perfil ou de costas, e terá a sensação de que entre nós existe algo secreto, um recôndito laço que nos une, que nos dá forças para nos entendermos." (pág. 154-155)
17) Pena que a essa altura eu já não estava lendo na Redenção ou em outro local público. Ótima expressão do singular prazer existencial em ser apenas mais um na multidão que habita uma grande cidade. O caráter de observação urbana é fundamental para acentuar o conflito do personagem que inscreve-se entre, de um lado, ser apenas mais um cidadão sem maior relevância, e, de outro, ser reconhecido em sua individualidade, ser encontrado em meio à indistinção existencial cinzenta. Além disso, pessoalmente, frente à epidemia de celulares e redes sociais (e suas respectivas ansiedades), cheguei num ponto em que nada me provoca maior sentimento dessa irmandade com desconhecidos do que ver alguém que apenas observa o mundo, sozinho, sereno - como um pária que se entretém com o sol filtrado pelas folhas, por exemplo.
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"Este dia com Avellaneda não é a eternidade, é só um dia, um pobre, indigno, limitado dia, que todos nós, de Deus para baixo, condenamos. Não é a eternidade, mas é o instante, que, afinal, é o único sucedâneo verdadeiro da eternidade." (pág. 156)
18) Mais um aspecto da tentativa do personagem de equilibrar o mundano e o transcendente. Proust aprovaria essa definição do instante - ao contrário do que muitos podem pensar, Em busca do tempo perdido não refere-se ao resgate do passado ou das memórias, e sim do valor do instante; é o agora que está sempre se extraviando. E o que o herói de Proust descobre é que somente a arte (literatura, artes visuais e, sobretudo, música) recupera plenamente o valor do instante, reatualizando-o no seu universo ficcional. Santomé decerto não concordaria, mas Benedetti, quem sabe?
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"Detesto os aniversários, as alegrias e as dores a prazo fixo." (pág. 168)
19) Pretendo adotar essa máxima para uso pessoal. Tem muito a ver com a nota anterior.
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"Tive a sensação, além disso, de que havia um argumento decisivo, um argumento que estava junto de mim, diante de mim, e que, apesar disso, eu não conseguia reconhecer, não conseguia incorporar à minha alegação." (pág. 176)
20) Me soa bastante kafkiana essa sensação, esse argumento que escapa, essa angustiante lógica elusiva, como num sonho. É uma forma de registro que ainda não aparecera de modo tão evidente no diário de Santomé, e que vem à tona nas inquirições a Deus após um evento trágico.
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"Ela me dava a mão e eu não precisava de mais nada. Bastava isso para que eu me sentisse bem acolhido. Mais do que beijá-la, mais do que nos deitarmos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela me dava a mão, e isso era amor." (pág. 180)
21) Eu nem pretendia acrescentar nada, apenas silenciar diante de toda essa beleza (e dor). Mas me ocorre agora, copiando o trecho, como essa mão faz um contraste (irônico, tocante, triste) com aquela catalogação das partes do corpo feminino na 1ª nota. Ampla vitória da mão que se dá.
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As entradas dos dias 6 de fevereiro e 13 de fevereiro. (pág. 180-184)
22) São duas entradas mais longas que o habitual, narrando a ida de Santomé à casa dos pais de Avellaneda. Não é o caso de transcrevê-las, nem de resumi-las. Para mim formam o ápice da obra, o seu momento mais marcante e sublime. Quero apenas remeter à nota 17, para enfatizar que o desejo do personagem de "ser reconhecido em sua individualidade, ser encontrado em meio à indistinção existencial cinzenta", vai além do relacionamento com Avellaneda, e alcança aqui, diante da mãe dela, uma forma de reconhecimento mais sutil, inefável, comovente. Me parece que a missão desse extraordinário e apaixonante livrinho se consuma nesse ponto.
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| Paul Fenniak |





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