quarta-feira, 20 de abril de 2011

Triunfos do ser

Brotam férteis respostas por aí à pergunta: por que escrevem?

Estive olhando algumas anotações, refletindo sobre alguns queridos autores, e não pude deixar de pensar que uma motivação e um desafio a todo autor deve ser a expressão da felicidade, definir em palavras o momento daquela alegria iluminada e onipotente que todos já sentimos, decerto raramente. Chamemos este momento, de plena consciência da vantagem do ser sobre o nada, de prazer em estar vivo, simplesmente - chamemos de "o triunfo do ser".

Trago à baila quatro visões do triunfo do ser, de distintas origens geográficas: norte-americana, russa, (sul)brasileira, japonesa. Não que sejam necessariamente representativas de seus rincões, mas que sejam diversas em suas raízes. Todas têm a peculiaridade dos tons autobiográficos, exceto por Simões Lopes Neto que, ao contrário do que muitos devem pensar, viveu no ambiente urbano e ali se desenvolveu, o que não lhe impediu de retratar o campo gaúcho com toda a propriedade. Assim, o triunfo do ser de Lopes Neto é, na verdade, de seu Blau Nunes, o guasca macanudo definidor de uma identidade sul-riograndense. Os demais estão manifestando a sua própria voz, como é o caso de Mishima em "Sol e Aço", de Thoreau em "Walden" e de Dostoiévski em "O mujique Marei". Que falem, então:

Thoreau e a natureza transcendental: "Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal - eis aí vosso êxito. A natureza inteira é vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. (...) Constituem a realidade mais elevada. Talvez os fatos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem. A verdadeira colheita do meu dia-a-dia é algo de tão intangível e indescritível como os matizes da aurora e do crepúsculo. O que tenho nas mãos é um pouco de poeira de estrelas e um fragmento do arco-íris". (Walden ou A Vida nos Bosques , trad. Astrid Cabral, ed. Global, 1984, p. 202-203)

um admirador de Thoreau visitando o lago Walden

Dostoiévski e a floresta da infância: "O verão chegava ao fim e logo seria preciso retomar o caminho de Moscou, aborrecer-me ainda todo um inverno a estudar francês; por isso sentia o coração opresso à idéia de deixar o campo. Atravessei a eira onde se amontoava os feixes de trigo, e, transpondo uma ravina, subi por uma mata espessa que se estendia para lá da ravina, até a floresta. (...) Em minha vida nada amei tanto quanto a floresta com seus cogumelos e suas bagas selvagens, seus insetos e seus pássaros, seus ouriços e seus esquilos, com o úmido e suave odor de suas folhagens putrefatas. Ainda hoje, escrevendo isto, aspiro todo o perfume da nossa floresta, lá longe, na aldeia; estas impressões durarão tanto quanto minha vida". (O mujique Marei, em Noites Brancas e outros contros, trad. Ruth Guimarães, ed. Ediouro, p. 206-207)

cena de algum filme

João Simões Lopes Neto e o pampa aberto: "Lá adiante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rindo, numa trepada de coxilha, numa descida de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços iam se encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ia-se tocando a bagualada de cada querência; de todos os lados cruzava-se a contradança, que se encaminhava sobre uma linha já combinada; e aos poucos ia crescendo o rodeio movediço, que engrossava, redemoinhava, espirrava, tornava a embolar-se... - e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada. Aí a gente entrava a manguear, aos dois lados, e então é que começava, de verdade, o divertimento! Arrematavam-se três, quatro, cinco fletes; corria-se sem parar, seis, dez, doze léguas... - e no fim estava-se folheiro!... Barbaridade! Nem há nada como tomar mate e correr eguada! (...) Aí é que era o lindo! Os fletes montados, alevianados, corriam, alçados no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares… e aquilo era largar as três-marias sobre a paleta do escolhido e o bagual logo rodava, no enleio das sogas. O gaúcho, apeava, ligava, tirava as boleadeiras e já se bancava de novo pra nova nombrada." (Correr eguada, em Contos Gauchescos e Lendas do Sul, ed. Globo, 1978, p. 46)
coxilhas de Canela, Rio Grande do Sul

Mishima e a caminhada solitária: "Meu dia estava cheio até as bordas de corpo e de ação. Havia excitação física, força, suor, músculo, a grama verde do verão estava em toda parte, uma brisa alisava a poeira do caminho por onde eu caminhava, os raios do sol iam ficando oblíquos, e, com minha roupa de treinamento, eu caminhava de maneira extremamente natural. Aqui estava a vida que eu queria. Naquela hora, eu saboreava a alegria solitária do instrutor de educação física voltando entre o velho prédio da escola e o matagal, depois de se desvencilhar de si mesmo na beleza de uma sessão de ginástica numa tarde de verão. Senti naquilo um repouso absoluto do espírito, uma beatificação suprema da carne. Verão, nuvens brancas, o vazio azul do céu após a última lição do dia, e um toque pungente de tristeza tingindo os reflexos do sol passando através das árvores, a felicidade de sentir que me adequava a tudo isso me embriagava. Eu realmente existia! (...) Eu não tinha nenhuma necessidade de ninguém mais, não tinha portanto, nenhuma necessidade de palavras. O mundo onde eu me encontrava era feito apenas de elementos de puros conceitos angelicais; tudo o mais tinha sido, por ora, abolido, e eu transbordava com a alegria infinita de eu e o mundo sermos uma coisa só, uma alegria afim àquela produzida pela água fria sobre a pele incandescida pelo sol de verão". (Sol e Aço, trad. Paulo Leminski, ed. Brasiliense, 1986, p. 57-60)

é ou não é um bom retrato para o triunfo do ser sob o sol?


Há diversas esquinas onde estas felicidades se cruzam e se desencontram. O caráter nostálgico impregna principalmente a Dostoiévski e Lopes Neto (ou melhor, Blau Nunes), visto que são memórias, lembranças do passado. Marcante e decisiva em todos é a presença da natureza. A incomunicabilidade se faz presente na felicidade de Thoreau e também na de Mishima. Blau Nunes relembra, mas o seu triunfo está em plena ação (ou na lembrança da ação?), no corpo talhado e temperado; Mishima triunfa exatamente sobre o esgotamento da ação, sobre o corpo desvencilhado de si. O russo não tem corpo, é uma existência cercada pelo encanto das mil vidas secretas da floresta. O solitário à beira do lago Walden é corporeidade transcendente, um animal em sintonia com o espírito dos fenômenos naturais. Todos estão beatificados pela existência, quando ultrapassa-se as palavras e alcança-se o triunfo do ser.

São amostras, tenho curiosidade em reunir mais exemplos, de outros autores, de outros tempos, de outros lugares. Aliás, do nosso tempo-lugar, este que hoje nos avassala sob o impacto de 21 séculos e epítetos de pós-modernidade, cibercultura, globalização e afins, deste é que tenho mais curiosidade. O que diz a literatura, hoje, do triunfo do ser? Thoreau já sinalizava aos seus contemporâneos para o resgate da natureza como essência elementar - que se agarre o arco-íris com as mãos; Dostoiévski diagnosticava a crise do homem racional e ilustrado - cansado das aulas da razão e da razoabilidade dos motivos; Blau Nunes lamentava o enclausuramento da liberdade primitva - o campo já não era mais aberto e divertido; Mishima procurava delimitar o alcance das palavras e medir a profundidade dos atos - o sol esquenta o aço tempera o homem vence o destino.

2 comentários:

  1. Gostei das suas escolhas, uma a uma materialziada em cores de encher não só os olhos mas a pele toda, como se todos os sentidos voltassem-se submissos à beleza. Gosto especialmente de Mishima e sua loucura centrada e cativante. E, claro, Dostoievski, foi ele - acho - que me ensinou a ler depois de tanto já ter lido.

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  2. Mishima é supremo, foi ele - acho - que me ensinou a ir além da leitura, depois de tanto já ter lido.

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