St. Louis Cotton Club Band (ca. 1925) |
Dobrai-vos à insigne expressão daquilo a que Nietzsche denomina de dionisíaco. A seguir um dos mais belos trechos de O Nascimento da Tragédia, cujas sugestões deixam clara a inspiração de júbilo beethoveniano, ao mesmo tempo em que mergulha o indivíduo plenipotente na dissolução carnavalesca universal.
"Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. Espontaneamente oferece a terra as suas dádivas e pacificamente se achegam as feras da montanha e do deserto. O carro de Dionísio está coberto de flores e grinaldas: sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera. Se se transmuta em pintura o jubiloso hino beethoveniano à 'Alegria' e se não se refreia a força da imaginação, quando milhões de seres frementes se espojam no pó, então é possível acercar-se do dionisíaco. Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a 'moda impudente' estabeleceram entre os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial. Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e elevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez. A argila mais nobre, a mais preciosa pedra de mármore é aqui amassada e moldada e, aos golpes de cinzel do artista dionisíaco dos mundos, ressoa o chamado dos mistérios eleusinos: 'Vós vos prosternais, milhões de seres? Pressentes tu o Criador, ó mundo?' " (p. 28-29)
(As últimas frases são do 'An die Freude' de Schiller, entoado pelo coral da 9ª de Beethoven).
Mais maduro, o autor posteriormente criticou esta sua obra da juventude (1872). Perdoados os laivos de ingênua e entusiasmada metafísica, resta-nos admirar a expressividade lírica do filósofo e a plasticidade cosmogônica da sua dança caótica.
"O nascimento da tragédia", de Friedrich Nietzsche, trad. J. Guinsburg, ed. Companhia das Letras, 2007.
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