[Publicado originalmente em 29/12/2024 em blog desativado]
Lançados nos cinemas de Porto Alegre em 2024, em ordem de preferência.
1º) Folhas de Outono (Kuolleet lehdet, dir. Aki Kaurismäki)
[visto e revisto na Casa de Cultura Mario Quintana]
Confesso que não conhecia nenhum dos filmes do diretor finlandês (o que decerto facilitou meu deslumbramento), e portanto não tinhas grandes expectativas. Reforço o coro dos que ficam cativados pelo olhar de Kaurismäki sobre essas figuras solitárias, desajeitadas, apagadas, falidas, e pelo coração genuíno que transparece por trás de um aparente artificialismo frio e irônico. Lembro especialmente do frenesi que percorria a sala de cinema na cena capital da reviravolta do protagonista ao ouvir as moças cantando e tocando no bar. (A propósito, o duo de irmãs se chama Maustetytöt, os seus discos são muito bons, e acabei me tornando um ouvinte frequente do pop irresistivelmente estranho delas, que cai como uma luva no filme e no estilo do diretor).
1º) Vidas Passadas (Past Lives, dir. Celine Song)
[visto e revisto na Casa de Cultura Mario Quintana]
O filme de estreia da sul-coreana não é tão bem realizado quanto o do experiente finlandês, mas a verdade é que no meu gosto está empatado na primeira colocação. Dificilmente vemos cenas de abertura e de encerramento tão magistrais quanto aqui — meses depois de vistas, ainda me pego envolvido no olhar enigmático da maravilhosa Greta Lee, como também na sua pungente caminhada de volta pra casa. Além da fascinante sugestão sobre as muitas camadas que compõem a realidade, raramente vemos personagens com tamanha dignidade, emocionalmente maduros, sem serem idealizados, funcionando perfeitamente numa estrutura dramática que abre mão do triângulo amoroso, dos conflitos romanescos e dos rompantes sentimentais — e, por isso, o aparentemente apagado personagem de John Magaro surpreendentemente se torna o mais interessante — não por acaso o desfecho do filme converge na sua direção. A diretora dá umas pistas bacanas sobre os bastidores nesse vídeo.
3º) Dias Perfeitos (Perfect Days, dir. Wim Wenders)
[visto na Casa de Cultura Mario Quintana e revisto em casa]
O ato de observar não é meramente passivo; as árvores, o vento, as sombras, a luz, a música, o silêncio, os livros, as ruas, os transeuntes desconhecidos — tudo isso merece a atenção que o filme de Wenders proporciona. Não se fica realmente sozinho quando se sabe apreciar a companhia de todo esse mistério do planeta — se esse idealismo pode transcender o universo ficcional do filme e ser vivido de fato, é algo que cabe a cada um de nós descobrir por conta própria. Do que mais gostei nesse filme é que me fez ouvir músicas conhecidas como se fosse pela primeira vez, magicamente restituindo aquele prazer único da descoberta de uma música que vai se tornar familiar. Nina Simone, minha maior paixão musical há anos, encerra o filme com aquele misto de alegria e melancolia que para mim é o verdadeiro espírito da arte e da vida (cena que, com outra trilha exuberante, lembra o emocionante final de Jackie Brown, a obra-prima de Tarantino). Wenders revela, inclusive, que a música interpretada por Nina Simone foi a inspiração principal desde o início das filmagens.
4º) Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, dir. Nuri Bilge Ceylan)
[visto na Casa de Cultura Mario Quintana]
Os filmes do diretor turco são sempre cansativos, com diálogos excessivamente longos e retóricos, mas nunca deixam de conter pelo menos uma cena cuja beleza numinosa não parece deste mundo. Nada em 2024 foi tão sublime quanto as cenas finais de Ervas Secas (retratadas na foto abaixo, a mesma que ilustra o cartão postal de divulgação distribuído na bilheteria do cinema, e que desde então deixo na minha escrivaninha como se fosse uma fotografia familiar).
5º) Nada será como antes (dir. Ana Rieper)
[visto na Casa de Cultura Mario Quintana]
O documentário sobre o Clube da Esquina está longe de ser um ótimo filme, mas os “personagens” são tão carismáticos, e as composições estão entre as melhores coisas já ouvidas na música popular, e o amálgama de diferentes estilos e formações musicais e culturais (música clássica, samba de terreiro, rock progressivo, Beatles, cantigas populares, etc) é tão representativo do que o Brasil tem de melhor, e o relato de Lô Borges seguindo uma voz desconhecida cantando no corredor do condomínio é um testemunho tão vivo de que, se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento (alô Elis Regina) — que não tem como não sair encantado da sala de cinema.
6º) O mal não existe (Aku wa sonzai shinai, dir. Ryûsuke Hamaguchi)
[visto e revisto na Casa de Cultura Mario Quintana]
Após assistir o filme e pesquisar sobre, fiquei grato por confirmar a minha impressão inicial de que o aspecto mais fundamental é a sua trilha sonora original — de Eiko Ishibashi, de quem partiu a provocação ao diretor para que fizesse um filme para a música que ela compusera. É tão intenso e significativo o uso da trilha sonora nos travellings de abertura e de encerramento, que fica mesmo a impressão de que apenas essa música simultaneamente bela e dissonante é capaz de expressar plenamente o mistério e a estranha beleza que as imagens e o ritmo do filme evocam. Nesse sentido, o novo filme de Hamaguchi se junta a, por exemplo, Morte em Veneza (Visconti) e O Vale do Amor (Guillaume Nicloux), como filmes que parecem ter sido feitos para traduzir em imagens uma música específica (respectivamente o Adagietto, de Mahler, e The Unanswered Question, de Charles Ives).
7º) Coringa: delírio a dois (Joker: Folie à Deux, dir. Todd Phillips)
[visto no GNC Cinemas do Praia de Belas]
Só não digo que possui a mesma qualidade do primeiro Coringa porque já não tem o mesmo impacto da surpresa. A transição para um musical (e o modo como isso impacta na sensibilidade do alucinado protagonista) é muito bem-vinda e coerente com o que o filme anterior apresentou ( aqui o meu comentário sobre o primeiro Coringa, em que enfatizei o uso da trilha sonora original e o caráter performático e operístico de “ um artista em busca do seu palco e do seu público, à procura do eu-lírico que se oculta sob a persona pública e cotidiana — e do assombroso poder ambivalente da força criadora e destrutiva que jaz na imaginação humana”), agora levado à sua plena realização nesse segundo filme. Além do mais, um dos momentos mais comoventes do ano foi ver Arthur Fleck cantando a versão em inglês de Ne Me Quitte Pas no telefone, sem resposta, uma desilusão amorosa toneladas mais pesada do que todo o estardalhaço social em torno do personagem — o tipo de cena que levo comigo pra sempre (e um momento perfeito para que o filme terminasse, ao meu ver, pois tudo o que vem depois me soa como concessão reiterativa).
8º) La Chimera (dir. Alice Rohrwacher)
[visto na Cinemateca Capitólio]
Apesar da costura incongruente e um tanto inábil de diversos gêneros e tipos de registro, La Chimera alcança momentos de verdadeira poesia e rara beleza — seja na crueza decadente de alguns cenários, na sublime exploração dos subterrâneos que guardam tesouros artísticos, ou no rico simbolismo explorado pelo filme. Carol Duarte rouba a cena com seus olhares furtivos e sua presença sempre interessante.
9º) Lupicínio Rodrigues: confissões de um sofredor (dir. Alfredo Manevy)
[visto na Cinemateca Capitólio]
Possivelmente o melhor artista que Porto Alegre já gerou, Lupicínio ganha um documentário muito bem realizado, entremeando com inteligência e sensibilidade os diversos registros — entrevistas, músicas, depoimentos, contextualização histórica e geográfica -, sem perder de vista o que mais importa: a música e o seu encanto, seja de júbilo, seja de dor.
10º) Jurado nº 2 (Juror #2, dir. Clint Eastwood)
[único da lista que não foi lançado nos cinemas, visto em casa]
Penso que o personagem do idoso que testemunha afirmando reconhecer o assassino — ansioso por ser útil, prestativo, socialmente relevante — acaba por ser o melhor retrato de todos nós, bem intencionados e equivocados, vítimas da nossa própria fé na humanidade, quando não passamos de limitadas criaturas em meio à escuridão e à borrasca, procurando ansiosamente por alguma certeza, desejando alguma convicção numa era em que isso já não parece possível.
P.S. 1: Fechada a lista, vejo que 6 filmes têm participação fundamental da música: 3 com música diegética decisiva, 1 com trilha sonora imprescindível, e 2 documentários sobre músicos.
P.S. 2: Dentre os muitos filmes que não vi, desconfio que O quarto ao lado (dir. Almodóvar) poderia ter lugar nesta lista.
Originally published at http://benderlucas.com on December 29, 2024.
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