domingo, 20 de março de 2011

Fukushima: admirável mundo novo


Em 1946, Aldous Huxley faz um prefácio à “Admirável Mundo Novo”, obra sua de 1931. O autor evita desqualificar seu romance em virtude de defeitos que seriam próprios da imaturidade. Recusa o remorso e busca identificar a validade dos prognósticos sobre o futuro, o que julga essencial num romance futurista. Refletindo sobre este aspecto da obra, quinze anos depois, admite: “Uma enorme e óbvia falha de previsão é imediatamente visível. Admirável mundo novo não contém nenhuma referência à fissão nuclear”. Justifica a omissão e passa a expor suas expectativas para o futuro, onde tem lugar destacado a ameaça de guerra atômica e a consequente hecatombe nuclear, ou, de forma menos pessimista (?), o domínio de sistemas totalitários sustentados pela energia nuclear aplicada em fins industriais.

O prefácio se estende no exercício de prognosticar a tragédia do futuro, até dar lugar à obra em si; esta, ainda no seu primeiro capítulo, contém uma referência curiosa. Os administradores do Centro de Incubação e Condicionamento explicam aos alunos visitantes todo o processo de produção em série de seres humanos, a partir de engenhosos mecanismos biogenéticos. As pessoas são geradas em conformidade com as necessidades de manutenção do sistema social:

                - Tantos indivíduos, de tal e tal qualidade – disse o Sr. Foster.
                - Distribuídos em tais e tais quantidades.
                - O Índice de Decantação ideal a qualquer momento.
                - As perdas imprevistas prontamente compensadas.
                - Prontamente – repetiu o Sr. Foster. – Se os senhores soubessem quantas horas suplementares tive de fazer depois do último terremoto no Japão!

É um comentário despretensioso e aparentemente¹ sem desdobramentos na história. Coloca um germe de instabilidade naquele processo hermeticamente ordenado; o terremoto, manifestação indomável da imprevisibilidade da natureza, perturba a perfeição do nosso sistema social.

No distante futuro imaginado por Huxley, as placas tectônicas continuam se movendo poderosamente (pelo menos sob o Japão); a ameaça nuclear, mesmo objetivamente negada, continua pairando no inconsciente coletivo. E os homens continuam aferrados a uma fracassada esperança de uma catástrofe definitiva.

Hiroshima foi o começo dessa história.
Fukuyama² foi o “fim da história”.
Fukushima, o que será?

Admirável Mundo Novo.

Notas
1. Digo aparentemente pois estou em plena leitura.
2. Fukuyama – filósofo e economista político nipo-americano – desenvolveu uma linha de abordagem da História, desde Platão até Nietzsche, passando por Kant e Hegel, a fim de revigorar a teoria de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Na sua ótica, após a destruição do fascismo e do socialismo, a humanidade, à época, teria atingido o ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Em oposição à proposta capitalista liberal, restavam apenas os vestígios de nacionalismos (sem possibilidade de significarem um projeto para a humanidade) e o fundamentalismo islâmico (restrito ao Oriente e a países periféricos). Desse modo, diante da derrocada do socialismo, o autor concluiu que a democracia liberal ocidental firmou-se como a solução final do governo humano, significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade. Fonte: Wikipédia
3. Todas as imagens são da tragédia de 11 de março no Japão, retiradas do excelente blog fotográfico The Frame


6 comentários:

  1. Oi, Lucas! Gostaria muito, se possível, que vc voltasse a falar do livro quando terminar... Quando li "Admirável Mundo Novo", senti um estranhamento muito grande em relação ao final e confesso que ele não foi muito bem "digerido" até por não ter ninguém para discutir sobre ele na época. Acho que vc vai me entender quando ler o final... :)

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  2. Combinado, uiara, o admirável mundo novo volta num amanhã, quanto estiver terminado. Discutiremos o fim deste mundo de amanhã!

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  3. Olá! Você deixou um comentário no meu blog (que eu já o respondi), mas ele me deixou curiosa para saber se acaso você conhece o romance "Zorba, o grego", de Nikos Kazantzakis... O filme é legal, mas o livro é EXTRAORDINÁRIO! Ele tem exatamente esse tom de tensão entre o racionalismo e a total entrega à vida, à poesia dela. É como se o Zorba gritasse a palavra VIVER a plenos pulmões! Bom, estou aqui a fazer análise e nem sei se você leu! Só não pude deixar de lembrá-lo quando li seu comentário...

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  4. Nem o filme nem o livro, uiara. Nem qualquer coisa do Kazantzakis (nesse momento fico um pouco corado pela vergonha; na minha ignorância eu pensava nesse grego como poeta). Não tenho argumentos, tu descobriu uma falha na minha "formação literária" (belas palavras, hein?). Assim, por livre associação de idéias, gritos de VIVER a plenos pulmões me lembram Nietzsche. Também Thoreau, também Jack London, tbm Kerouac, essa linhagem beatnik maldita. Mas quando eu topar com o Zorba eu vou ter uma conversa com ele, pode deixar.
    Ah, uma coisa que eu havia esquecido: um copo de logos é um belíssimo nome para um blog.

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  5. Bom, quanto às minhas "falhas de formação literária", eu nem me atrevo a enumerá-las... E em relação ao Kazantzakis, acho que você só o encontraria em sebos (talvez no Estante Virtual). Parece que ele e Nietzsche influenciaram muito a Hilda Hilst. Talvez seja um sinal de que eles realmente têm algo em comum.
    Quanto ao nome do meu blog, obrigada! Mas o mérito não deve vir exatamente para mim... "copo" vem do conto "Um copo de cólera", de Raduan Nassar (há uma citação no blog, não sei se você percebeu), e eu só o complementei de acordo com o meu propósito... O título de Raduan ainda hoje me encanta!

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  6. Sim, uiara, claro que percebi a menção ao copo de cólera que tu citas no blog; ainda assim, de cólera pra logos vai um bocado de criatividade. Lavoura arcaica também é um belo título, pra ficar em raduan.

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