pintura de Jackson Pollock |
Certa vez, após apresentar um concerto em Roma, John Cage foi repreendido por uma velha senhora, que foi ao seu encontro para dizer-lhe que sua música era escandalosa, repugnante e imoral, ao que o músico respondeu: "Era uma vez, na China, uma senhora belíssima que fazia enlouquecer todos os homens da cidade; certo dia, caiu nas profundezas de um lago e assustou os peixes".
Quem nos conta é Umberto Eco em Zen e Ocidente, um dos magníficos ensaios de Obra Aberta. O estudioso italiano considerava, àquela altura de 1959, que a onda Zen que varria o Ocidente tinha na vanguarda musical o seu mais fértil campo. Eco pinta Cage com cores de divertida dissonância:
"Mas onde a influência Zen se fez sentir de maneira mais sensível e paradoxal foi na vanguarda musical norte-americana. Referimo-nos em especial a John Cage, a figura mais discutida da música norte-americana (sem dúvida, a mais paradoxal de toda a música contemporânea), o músico com que muitos compositores pós-weberianos e eletrônicos estão freqüentemente em polêmica, sem poder subtrair-se à sua fascinação e ao inevitável magistério de seu exemplo. Cage é o profeta da desorganização musical, o sumo-sacerdote do acaso: a desagregação das estruturas tradicionais, que a nova música serial procura com uma decisão quase científica, encontra em Cage um eversor desprovido de qualquer inibição. [...] A quem o interpela a respeito das finalidades de sua música, Cage responde citando Lao Tsé e advertindo o público de que só se chocando com a completa incompreensão e medindo a própria estultice ele poderá colher o profundo sentido do Tao. A quem lhe objeta que sua música não é música, Cage responde que, com efeito, não pretende fazer música; a quem propõe questões demasiado sutis, a resposta é o pedido para repetir a pergunta: se a pergunta for repetida, pede que se repita mais uma vez a questão; ao terceiro pedido de repetição, o interlocutor toma consciência de que a expressão: 'Por favor, quer repetir a pergunta?' não constitui um pedido mas a própria resposta à pergunta. Na maioria das vezes, Cage prepara, para seus contraditores, respostas pré-fabricadas, boas para qualquer pergunta, visto que querem ser desprovidas de sentido. O ouvinte superficial se satisfaz ao pensar em Cage como num blefador que nem mesmo é muito hábil, mas suas constantes referências às doutrinas orientais deveriam alertar-nos a seu respeito: antes de ser visto como músico de vanguarda, deve ser encarado como o mais inopinado dos mestres Zen, e a estrutura de seus contraditores é perfeitamente idêntica à dos mondo, as típicas perguntas com respostas absolutamente casuais, com que os mestres japoneses levam os discípulos à iluminação. No plano musical pode-se discutir efizcamente a respeito do destino da nova música, se reside no completo abandono à felicidade do acaso ou na disposição de estruturas 'abertas', todavia orientadas segundo módulos de possibilidade formal: mas no plano filosófico, Cage é intocável, sua dialética Zen perfeitamente ortodoxa, sua função de pedra de escândalo e de estimulador das inteligências sopitadas, inigualável. E é o caso de perguntar se ele está contribuindo para o esoterismo Zen ou para o campo musical, procurando uma lavagem mental de hábitos musicais adquiridos."
Eco prossegue na identificação de elementos Zen na cultura ocidental, passando pelo dadaísmo, surrealismo, Ionesco, Beckett, chegando aos filósofos existencialistas, especialmente em Wittgenstein. "Há em Wittgenstein a renúncia à filosofia como explicação total do mundo. [...] As proposições linguísticas não interpretam o fato, nem tampouco o explicam: elas o 'mostram', indicando e reproduzindo fielmente suas conexões. Uma proposição reproduz a realidade como se fora uma das muitas projeções dela, mas nada pode ser dito acerca do acordo entre os dois planos: esse somente pode ser mostrado."
De Cage a Wittgenstein, da música de vanguarda ao existencialismo, Eco identifica a recusa a enrijecer o mundo com explicações, numa postura de fundamentos caros ao Zen. Cita o exemplo do monge, de simplicidade estarrecedora: ao discípulo que o interrogava sobre o significado das coisas, o monge responde erguendo o cajado; o discípulo explica com muita sutileza teológica o significado do gesto, mas o monge contesta que a explicação é demasiado complexa. O discípulo pergunta então qual é a exata explicação do gesto. O monge responde erguendo novamente o cajado.
Eco não alimenta ilusões, adverte que a relação entre o Zen e a cultura ocidental é mais problemática do que os exemplos acima fazem acreditar. O que poderíamos dizer hoje da nossa cultura ocidental, 52 anos depois destas palavras de Eco? "Repentinamente, alguém encontrou o Zen; avalizada por sua venerável idade, essa doutrina vinha ensinando que o universo, o todo, é mutável, indefinível, fugaz, paradoxal; que a ordem dos eventos é uma ilusão de nossa inteligência esclerosante, que toda tentativa para defini-la e fixá-la em leis está condenada ao fracasso... Mas que justamente na plena consciência e aceitação alegre dessa condição está a extrema sabedoria, a iluminação definitiva; e que a crise eterna do homem não surge porque ele deve definir o mundo e não o consegue, mas porque quer defini-lo e não deve."
Eco não acreditava muito em que o ocidental pudesse renunciar ao desejo de definir o mundo. Cage e os existencialistas seriam exceções? O conflito está aí, ao nosso redor e dentro de nós, em cada esquina, em cada blog, em cada vida.
red pill or blue pill? |
Tenho cá pra mim que para estar no mundo, sobre ele agir, é preciso defini-lo, dar-lhe forma. Para isso (e para cantar mulheres como bem disse Robin Williams em pele de John Keating)a linguagem. Entretanto - e daí um sofrer - quando o definimos, o perdemos, porque ele passar a ser apenas o que já conhecemos, tornando-se impossível sabê-lo mais. E é preciso desconstruir o sabido. Se quero tê-lo é preciso não dizê-lo, mas se não o digo não o tenho em mim. Assim, o pêndulo (mas não o de foucault). Quando esquecemos de não o saber (ao mundo)nos enrijecemos em protestos como o que abre seu post (penso eu) ou em fantasias fantasmas sobre o mundo do Outro (falar da vida alheia sempre tem este ar de censura por não serem os outros todos nosso espelho, não acha?).
ResponderExcluirA despropósito de tudo (ou totalmente imbricado) eu recomendo este post de uma amigo querido (mas não por sê-lo e sim pelas belas imagens e preciso texto): http://www.etudogentemorta.com/2011/03/%D8%A7%D9%84%D8%B9%D8%B1%D8%A8/
Gostei muito do texto! Eu ia até comentar, mas com essa estória de definir ou não definir, acabei deixando pra lá... :p
ResponderExcluirp.s.: mas realmente é difícil demais fugir dessa nossa longa tradição que tenta, o tempo todo, definir tudo e todos!
Quando terminei o texto, faltava o título. E é claro que não havia título que pudesse definir aquilo. Pensei em deixar sem, mas acabei recorrendo à frase de Wittgenstein. Não haveria título, não haveria post, não haveria blog, se pudesse ou já soubesse me contentar com a sabedoria do monge que apenas ergue o cajado. Engulo a pílula vermelha e sigo em direção ao som e à fúria. Mas não desisti da azul contemplação, e no fundo estou de acordo com Nietzsche em que a linguagem empobrece a realidade. Em mim o conflito é vital e as opções são todas inoptáveis, salvo a música, que não é nem uma coisa nem outra e é todas.
ResponderExcluir