quinta-feira, 14 de julho de 2011

O mito da caverna de Nakre Anglern

foto de Trent Parke

Eu tenho um talento impressionante para a inércia. "É espantoso, é espantoso. Que capacidade para o alheamento! Com que força sabe escapar à ação! Que insensibilidade exuberante!" Eu mesmo não entendo como é que posso ter o tédio em tão alta estima. A solidão, meu Deus, a solidão! Ela me é tão necessária quanto o próprio ar! E ainda se eu tentasse ser um intelectual, um filósofo, um misantropo, um radical, sei eu, um destes que se agarra às idéias e faz dela suas companheiras no ócio e na urgência - mas não! Minhas idéias são relâmpagos de sonho, eu as perco assim que as tenho, e mal posso lembrar o que pensei há um minuto. (Não há pergunta que me deixe mais embaraçado e aflito do que: - E aí, o que tu fez ontem? - O esforço por lembrar é terrível, e penoso é admitir que não há o que lembrar, pois eu nada fiz ontem. E no entanto me pareceu um dia bem agradável).

Dizem que sonhamos todas as noites, embora nossa memória geralmente não retenha mais que fugazes impressões. Mas esta noite eu acordei de um sonho, e fiquei desperto na cama, lambendo cada gotinha do sabor de felicidade que ia escorrendo pelo ralo da memória. Eu ainda lembro de algumas coisas, mas elas já não me deixam muito feliz, porque me assombra esta dúvida: por que é que no sonho fui feliz de uma maneira que não acontece na realidade? Por que é que na "vida real" (ora, ora, outra hora discutimos o que seja isso) não sinto esta felicidade que eu de fato senti (realmente! de fato! sim, eu senti!) no sonho?

Ainda na cama, às 4h50min, meu corpo era atravessado por uma sensação de bem-estar indescritivelmente boa. Talvez mesmo a endorfina (ou seja lá que química) estivesse atuando no meu córtex (ou seja lá onde for), como ocorre em determinadas circunstâncias da vida, diante de determinadas experiências. Mas não havia experiência alguma! Eu estava deitado na cama, simplesmente dormindo, meramente recuperando energias para mais um dia de trabalho. Eu não estava me defrontando com nenhuma realidade, eu estava praticamente morto, meu Deus, e no entanto... que felicidade! Como puderam minhas endorfinas e meus agentes químicos enganarem-se (ou enganarem-me?) assim dessa forma? Não havia nada, a não ser escuridão e uma leve respiração, e, inexplicavelmente, fez-se a luz da felicidade numa explosão cosmogônica, e eu fui feliz naquele momento, feliz como poucas vezes.

Eu caçava um tigre (com uma espada?). Eu tinha os pés descalços. Havia vento e eu sentia cheiros (vários ao mesmo tempo?). Eu perseguia a fera. Eu a vencia. Eu via minha face (que não era minha) refletida na poça de sangue.

Foi isso que fiz ontem.

2 comentários:

  1. A felicidade, então, é uma espécie de combustão espontânea, de dom, não se produz, ela se faz. Ah, que assim seja.

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  2. É uma epifania. Ocorre de olhos bem fechados. É possível ser feliz de olhos bem fechados. E nem é preciso sair da caverna, como queria Platão. Amém.

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