quarta-feira, 30 de março de 2011

parágrafo

[como despertar a memória usando palavras impressas]

"Houve uma rápida visão de azul, lembrava-se, e alguém sentado com ele rira, capitulara, e ele ficara muito zangado. Devia ter sido sua mãe, pensou, sentada numa espreguiçadeira, enquanto seu pai ficara de pé atrás dela. Começou a procurar por entre a série infinita de impressões que o tempo, folha por folha, dobra após dobra, suave e incessantemente, depositara em seu cérebro; por entre odores e sons; vozes ásperas, graves, doces; e luzes passando, vassouras batendo; e o marulho e o silêncio do mar, e como um homem andava de um lado para outro, se detendo de repente e se postando imóvel atrás deles."

"Passeio ao Farol" de Virginia Woolf, tradução de Luiza Lobo, editora Riográfica, pág. 171

terça-feira, 29 de março de 2011

Quem tem medo de Virginia Woolf?

 
Cena do filme À Deriva




Milton Ribeiro lembrou dos 70 anos da morte de Virginia Woolf, ontem.

Hoje, é dia de relembrar que a obra continua viva, e muito. Relembrar e comemorar.

Passeio ao Farol é leitura do mais puro e genuíno enlevo, e lá estão elencadas algumas imagens que são de vida simples e gostosa de ser vivida:

"símbolos usuais da bondade divina - o pôr-do-sol sobre o mar, a palidez da aurora, o nascer da lua, os barcos de pesca contra o luar, as crianças atirando-se nos montes de grama - [...] essa alegria, essa serenidade. [...] Sonho de compartilhar, de completar, de encontrar sozinho, na praia, uma resposta"





crianças de Cabo Verde
 


Também se faz sentir o poder-sem-nome que provoca a meditação angustiada:

"Então, deixando os olhos deslizarem imperceptivelmente pela poça e descansarem na ondulante linha entre o céu e o mar, nos troncos das árvores que a fumaça dos navios a vapor fazia tremerem acima do horizonte, ficou hipnotizada por todo esse poder que se contraía selvagemente e inevitavelmente se alastrava. E os dois sentidos, de amplidão e de insignificância, florescendo dentro da poça (que diminuíra outra vez), faziam-na se sentir com os pés e as mãos amarradas e incapaz de se mover devido à intensidade de sentimentos que reduziam seu próprio corpo, sua própria vida e as vidas de todas as pessoas do mundo, para sempre, ao nada. Assim, ouvindo as ondas, de cócoras diante da poça, ela meditava".



Mente tão sensível como a de Virginia não poderia mesmo resistir a tamanho fluxo de vida. Cada palavra contém um centro gravitacional irresistível, onde transitam, contemplando-se orgulhosos, o deleite da memória, a fugacidade do instante, a melancolia da vida.

ilha de Lesbos, Grécia
"Ela não queria dizer alguma coisa, mas tudo. [...] A premência do momento sempre fazia as palavras perderem seu objetivo. Elas se alvoroçavam e acabavam atingindo o alvo algumas polegadas abaixo. Então, desistia-se; a idéia era de novo esquecida; e passava-se a ser como a maioria das pessoas de meia-idade: cauteloso, furtivo, com rugas entre os olhos e um olhar de perpétua apreensão. Pois como se poderia expressar em palavras essas emoções do corpo? Como expressar aquele vazio ali? (Olhava a escada da sala de visitas, que parecia extraordinariamente vazia). Era uma sensação do corpo, não da mente. As sensações físicas que acompanhavam a visão dos degraus vazios se tornavam extremamente desagradáveis. O querer e não ter transmitia a todo o seu corpo uma insensibilidade, um vazio, uma tensão. Querer e não ter - querer e querer - como isso atormentava seu coração!"

pintura de Edward Hopper

WOOLF, Virginia. Passeio ao Farol. Trad. Luiza Lobo. Riográfica, 1987.

sábado, 26 de março de 2011

O que pode ser mostrado não pode ser dito


pintura de Jackson Pollock


Certa vez, após apresentar um concerto em Roma, John Cage foi repreendido por uma velha senhora, que foi ao seu encontro para dizer-lhe que sua música era escandalosa, repugnante e imoral, ao que o músico respondeu: "Era uma vez, na China, uma senhora belíssima que fazia enlouquecer todos os homens da cidade; certo dia, caiu nas profundezas de um lago e assustou os peixes".

Quem nos conta é Umberto Eco em Zen e Ocidente, um dos magníficos ensaios de Obra Aberta. O estudioso italiano considerava, àquela altura de 1959, que a onda Zen que varria o Ocidente tinha na vanguarda musical o seu mais fértil campo. Eco pinta Cage com cores de divertida dissonância:

"Mas onde a influência Zen se fez sentir de maneira mais sensível e paradoxal foi na vanguarda musical norte-americana. Referimo-nos em especial a John Cage, a figura mais discutida da música norte-americana (sem dúvida, a mais paradoxal de toda a música contemporânea), o músico com que muitos compositores pós-weberianos e eletrônicos estão freqüentemente em polêmica, sem poder subtrair-se à sua fascinação e ao inevitável magistério de seu exemplo. Cage é o profeta da desorganização musical, o sumo-sacerdote do acaso: a desagregação das estruturas tradicionais, que a nova música serial procura com uma decisão quase científica, encontra em Cage um eversor desprovido de qualquer inibição. [...] A quem o interpela a respeito das finalidades de sua música, Cage responde citando Lao Tsé e advertindo o público de que só se chocando com a completa incompreensão e medindo a própria estultice ele poderá colher o profundo sentido do Tao. A quem lhe objeta que sua música não é música, Cage responde que, com efeito, não pretende fazer música; a quem propõe questões demasiado sutis, a resposta é o pedido para repetir a pergunta: se a pergunta for repetida, pede que se repita mais uma vez a questão; ao terceiro pedido de repetição, o interlocutor toma consciência de que a expressão: 'Por favor, quer repetir a pergunta?' não constitui um pedido mas a própria resposta à pergunta. Na maioria das vezes, Cage prepara, para seus contraditores, respostas pré-fabricadas, boas para qualquer pergunta, visto que querem ser desprovidas de sentido. O ouvinte superficial se satisfaz ao pensar em Cage como num blefador que nem mesmo é muito hábil, mas suas constantes referências às doutrinas orientais deveriam alertar-nos a seu respeito: antes de ser visto como músico de vanguarda, deve ser encarado como o mais inopinado dos mestres Zen, e a estrutura de seus contraditores é perfeitamente idêntica à dos mondo, as típicas perguntas com respostas absolutamente casuais, com que os mestres japoneses levam os discípulos à iluminação. No plano musical pode-se discutir efizcamente a respeito do destino da nova música, se reside no completo abandono à felicidade do acaso ou na disposição de estruturas 'abertas', todavia orientadas segundo módulos de possibilidade formal: mas no plano filosófico, Cage é intocável, sua dialética Zen perfeitamente ortodoxa, sua função de pedra de escândalo e de estimulador das inteligências sopitadas, inigualável. E é o caso de perguntar se ele está contribuindo para o esoterismo Zen ou para o campo musical, procurando uma lavagem mental de hábitos musicais adquiridos."

Eco prossegue na identificação de elementos Zen na cultura ocidental, passando pelo dadaísmo, surrealismo, Ionesco, Beckett, chegando aos filósofos existencialistas, especialmente em Wittgenstein. "Há em Wittgenstein a renúncia à filosofia como explicação total do mundo. [...] As proposições linguísticas não interpretam o fato, nem tampouco o explicam: elas o 'mostram', indicando e reproduzindo fielmente suas conexões. Uma proposição reproduz a realidade como se fora uma das muitas projeções dela, mas nada pode ser dito acerca do acordo entre os dois planos: esse somente pode ser mostrado."

De Cage a Wittgenstein, da música de vanguarda ao existencialismo, Eco identifica a recusa a enrijecer o mundo com explicações, numa postura de fundamentos caros ao Zen. Cita o exemplo do monge, de simplicidade estarrecedora: ao discípulo que o interrogava sobre o significado das coisas, o monge responde erguendo o cajado; o discípulo explica com muita sutileza teológica o significado do gesto, mas o monge contesta que a explicação é demasiado complexa. O discípulo pergunta então qual é a exata explicação do gesto. O monge responde erguendo novamente o cajado.

Eco não alimenta ilusões, adverte que a relação entre o Zen e a cultura ocidental é mais problemática do que os exemplos acima fazem acreditar. O que poderíamos dizer hoje da nossa cultura ocidental, 52 anos depois destas palavras de Eco? "Repentinamente, alguém encontrou o Zen; avalizada por sua venerável idade, essa doutrina vinha ensinando que o universo, o todo, é mutável, indefinível, fugaz, paradoxal; que a ordem dos eventos é uma ilusão de nossa inteligência esclerosante, que toda tentativa para defini-la e fixá-la em leis está condenada ao fracasso... Mas que justamente na plena consciência e aceitação alegre dessa condição está a extrema sabedoria, a iluminação definitiva; e que a crise eterna do homem não surge porque ele deve definir o mundo e não o consegue, mas porque quer defini-lo e não deve."

Eco não acreditava muito em que o ocidental pudesse renunciar ao desejo de definir o mundo. Cage e os existencialistas seriam exceções? O conflito está aí, ao nosso redor e dentro de nós, em cada esquina, em cada blog, em cada vida.


red pill or blue pill?


quinta-feira, 24 de março de 2011

Eu tenho meu útero

Eu conheço apenas uma única situação que me dá contentamento (isto, talvez, seja mentira, mas cai bem aqui): o útero. De resto, é como disse o poeta-Pessoa,

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói, quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Eu sei reviver o útero, meus amigos, e isso também dói, porque paga-se o preço do isolamento, da solidão profunda. Mas o útero é a solidão perfeita, porque em sintonia com aquele som abafado e reconfortante, um pouco assustador às vezes, do coração da mãe (mãe-mundo). Literalmente mergulhado num caldo de som e de contentamento; nada mais, nada, nada... só o som e o contentamento.

Mas eu dizia que sei reviver o útero, que sei superar a sina de peixe fora d'água que acompanha toda criatura humana.

Estou contente, nada me falta: chegou uma chuva suave lá fora, enquanto aqui dentro chovem Vitor Ramil e Sigur Rós, me devolvendo ao útero úmido do contentamento.

Ouçam... ouçam... é o milagre de estar contente! (só funciona com fone de ouvido)


clipe com gostosíssimas imagens tendo por trilha All Allright, da banda islandesa Sigur Rós
Créditos para Marco Aslan


a mesma música rendeu um enredo que não ficou ruim
Créditos para myhairisprettykewl



Longes, de Vitor  Ramil


Atalho para o contentamento: discografia Sigur Rós
(recomendo o disco de 1999 e o último, de 2008, cujas últimas faixas estão entre as melhores reproduções uterinas que conheço)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Como um sonho atravessa o mundo

O jornal aqui da província de Novo Hamburgo traz a seguinte matéria na edição de hoje: "Filme protagonizado por Breno Mello inspira Obama". Breno Mello, ator principal do famoso filme Orfeu Negro (1959), era jogador de futebol e viveu por estas bandas, ainda habitadas por seus familiares. Obama relembrou o filme em discurso na sua visita ao Brasil. Mas este é um detalhe provinciano (e a matéria é ruim), o que interessa é a história, belíssima, que liga as raízes afetivas do presidente dos EUA à rica fonte de cultura do Brasil.

Conheci essa história pelo meio mais vivo e quente, creio, e gostaria de compartilhá-la. Ela está muito bem narrada por José Miguel Wisnik, em aula-show do Instituto Moreira Salles sobre a canção brasileira. Não, eu não estou fugindo do assunto: a canção brasileira chega ao filme Orfeu Negro, via Vinícius de Moraes, principalmente, grande idealizador do projeto; de Orfeu Negro vamos à mãe de Obama, que assistiu o filme quando jovem e ficou encantada, tanto que, décadas depois, levou o filho Barack ao cinema; do encontro na sala escura entre o jovem Barack, sua mãe e aquele caldo de cultura brasileira de Orfeu Negro, nasceu uma compreensão que é dessas coisas raras da vida.

E o mérito é todo de Barack Hussein Obama, que, para lá de ser o primeiro presidente negro dos EUA, é um sujeito que conquistou minha simpatia por este episódio, narrado em sua autobiografia (um parêntese: Obama autobiografou-se quando ainda era jovem, tinha apenas galgado alguns degraus de destaque na Universidade de Harvard e nem sequer havia iniciado na carreira política!). A figura-chave deste conto (vamos chamar assim) é, na verdade, a mãe de Obama, cuja trajetória peculiar começa pelo próprio nome: Stanley Ann - aqui mais detalhes da interessante vida desta antropóloga branca do Kansas.

Cliquem aqui, seus impacientes cibernéticos, e calem-se uma vez na vida para ouvir uma boa história; aos mais afoitos, recomendo que avancem a barra de tempo até a marcação de 04:05, que é quando começa propriamente esta breve e bela narração.

E então entenderão quão poético é o exagero de dizer que o primeiro presidente negro dos EUA nasceu do sonho de Vinícius de Moraes.


Cena do filme Orfeu Negro

Eu, se fosse você, prosseguiria escutando as aulas-show do site do IMS, intituladas "O Fim da Canção", banho de interpretação sobre aspectos da canção popular brasileira, com destaque para a Bossa Nova, Caymmi e o Tropicalismo.

terça-feira, 22 de março de 2011

parágrafo

[como despertar os sentidos usando palavras impressas]

"Deixando a penumbra vermelha do subsolo, Lenina Crowne bruscamente subiu dezessete andares, virou à direita ao sair do elevador, meteu-se por um corredor comprido e, abrindo uma porta assinalada VESTIÁRIO DAS MOÇAS, mergulhou num caos atordoante de braços, bustos e lingeries. Torrentes de água quente enchiam cem banheiras, respingavam ou delas se escoavam com um gorgolejar ruidoso. Roncando e sibilando, oitenta aparelhos de massagem a vibro-vácuo sacudiam e sugavam simultaneamente a carne firme e tostada de oitenta soberbos espécimes femininos. Todas falavam a plenos pulmões. Uma máquina de Música Sintética trinava um solo de supertrombone de pistão."

"Admirável mundo novo" de Aldous Huxley, tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano, editora Globo, pág. 74-75

tem cheiro, cor, som, movimento, até gosto - só falta poder agarrar essa mulherada

domingo, 20 de março de 2011

Fukushima: admirável mundo novo


Em 1946, Aldous Huxley faz um prefácio à “Admirável Mundo Novo”, obra sua de 1931. O autor evita desqualificar seu romance em virtude de defeitos que seriam próprios da imaturidade. Recusa o remorso e busca identificar a validade dos prognósticos sobre o futuro, o que julga essencial num romance futurista. Refletindo sobre este aspecto da obra, quinze anos depois, admite: “Uma enorme e óbvia falha de previsão é imediatamente visível. Admirável mundo novo não contém nenhuma referência à fissão nuclear”. Justifica a omissão e passa a expor suas expectativas para o futuro, onde tem lugar destacado a ameaça de guerra atômica e a consequente hecatombe nuclear, ou, de forma menos pessimista (?), o domínio de sistemas totalitários sustentados pela energia nuclear aplicada em fins industriais.

O prefácio se estende no exercício de prognosticar a tragédia do futuro, até dar lugar à obra em si; esta, ainda no seu primeiro capítulo, contém uma referência curiosa. Os administradores do Centro de Incubação e Condicionamento explicam aos alunos visitantes todo o processo de produção em série de seres humanos, a partir de engenhosos mecanismos biogenéticos. As pessoas são geradas em conformidade com as necessidades de manutenção do sistema social:

                - Tantos indivíduos, de tal e tal qualidade – disse o Sr. Foster.
                - Distribuídos em tais e tais quantidades.
                - O Índice de Decantação ideal a qualquer momento.
                - As perdas imprevistas prontamente compensadas.
                - Prontamente – repetiu o Sr. Foster. – Se os senhores soubessem quantas horas suplementares tive de fazer depois do último terremoto no Japão!

É um comentário despretensioso e aparentemente¹ sem desdobramentos na história. Coloca um germe de instabilidade naquele processo hermeticamente ordenado; o terremoto, manifestação indomável da imprevisibilidade da natureza, perturba a perfeição do nosso sistema social.

No distante futuro imaginado por Huxley, as placas tectônicas continuam se movendo poderosamente (pelo menos sob o Japão); a ameaça nuclear, mesmo objetivamente negada, continua pairando no inconsciente coletivo. E os homens continuam aferrados a uma fracassada esperança de uma catástrofe definitiva.

Hiroshima foi o começo dessa história.
Fukuyama² foi o “fim da história”.
Fukushima, o que será?

Admirável Mundo Novo.

Notas
1. Digo aparentemente pois estou em plena leitura.
2. Fukuyama – filósofo e economista político nipo-americano – desenvolveu uma linha de abordagem da História, desde Platão até Nietzsche, passando por Kant e Hegel, a fim de revigorar a teoria de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Na sua ótica, após a destruição do fascismo e do socialismo, a humanidade, à época, teria atingido o ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes. Em oposição à proposta capitalista liberal, restavam apenas os vestígios de nacionalismos (sem possibilidade de significarem um projeto para a humanidade) e o fundamentalismo islâmico (restrito ao Oriente e a países periféricos). Desse modo, diante da derrocada do socialismo, o autor concluiu que a democracia liberal ocidental firmou-se como a solução final do governo humano, significando, nesse sentido, o "fim da história" da humanidade. Fonte: Wikipédia
3. Todas as imagens são da tragédia de 11 de março no Japão, retiradas do excelente blog fotográfico The Frame


sexta-feira, 18 de março de 2011

Cisne Negro: espetáculo das sombras na caverna

Os críticos de matizes progressistas têm grande dificuldade em aceitar o fato de um filme ser um espetáculo. A síndrome platônico-socrática os conduz sempre para fora da caverna, para a realidade solar, de modo que vêem o espetáculo sempre pelo lado de fora, deixando de vivenciá-lo realmente, intensamente, sensorialmente, como ocorre com o abismado espectador da caverna-cinema (ou cinema-caverna?). Procuram argumentos quando o que se exige é deixar-se seduzir pelos sentidos. Entendem que isso seja uma desvantagem, quando é, na verdade, o sentido primeiro e fundamental da arte: o prazer.
Resta aos pássaros que alçam voos diante de abismos encontrarem um lugar para pousar. O terrível Cisne Negro guia-se por imponente vigor, ousa confrontar o sol e projeta sua sombra surreal sobre o espectador.
Cisne Negro é o espetáculo da coragem desentranhando-se do ventre repressor. O desabrochar da flor mais bela e terrível. O triunfo da fantasia sobre as pequenezas reais. A exuberância do som e da fúria. E sendo assim, é a experiência concreta do prazer de sentar numa sala escura, diante de uma tela imensa e envolto em poderoso som. O adjetivo espetacular serve aqui com o devido valor.
Sou seu cúmplice, cisne famigerado. Confesso, eu me deixei levar por sua coragem inaudita, e matei minha realidade só para vivenciar contigo o prazer da fantasia mais perversa se realizando. Ora, como se realiza o que não é real? Como pode uma fantasia confundir-se com a pele? Como se derruba a barreira ilusória entre o bem e o mal? De onde vem a coragem da metamorfose?
São estas as perguntas de Aronofsky, alimentadas pelo balé de Tchaikovsky e pela trilha sonora de Clint Mansell.
Sim, há o exagero no uso dos efeitos especiais; há a insuficiência de Vincent Cassel; há a lamentável participação de Winona Ryder. Pro diabo com tudo isso, o filme é apaixonante. Sai-se da sala escura pronto a matar os últimos anjos da inocência que habitam nosso interior. Recomenda-se asas abertas à obsessão.

domingo, 13 de março de 2011

Só mentiras fazem sentido

Poucos leram o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), típico caso de escritor cujo tamanho ultrapassa em muito a divulgação que recebeu. Curioso é que, ao que parece, os poucos que o conhecem são um tanto afeiçoados à sua obra. Onetti se torna íntimo de nós, seus leitores,  fazendo vibrar a superfície da nossa placidez com ondas de obsessão sem centro definido. A atmosfera onettiana envolve-nos quase ao ponto de sufocamento; bem, e que leitor obstinado não gostaria de ter a garganta afogada em palavras e silêncios, enquanto procura  (geralmente em vão) algo à sua volta que lhe devolva a ilusória segurança das certezas?

A literatura de Onetti é uma provocação, é um arrebatamento, uma desilusão, um desengano. Porque nunca se pisa em terreno totalmente firme quando se anda junto a Onetti. Zonas de desconforto acolhem seus personagens, e o leitor nunca está convicto de que existam soluções que sejam mais interessantes, mais verdadeiras e mais intensas do que os próprios problemas.

Lendo seus primeiros contos, das décadas de 1930 e 1940, temos a primeira e, talvez, mais fundamental característica da obra de Onetti: a estetização da vida – explico: a realidade vivida com o sabor da ficção, o dia-a-dia vivenciado como criação dos desejos. Claro, esta é uma característica definidora da própria literatura, da arte em geral, mas em Onetti tal realização ganha vida nos próprios personagens.

Em “Avenida de Mayo – Diagonal – Avenida de Mayo”, o personagem recolhe impressões enquanto caminha pela famosa avenida, reelaborando-as em divagações-delírios estéticos. Sons, letreiros, movimentos, cores e anúncios ganham histórias que nascem e morrem na cabeça do transeunte. O personagem dá asas ao seu desejo de tornar interessante a banalidade que o cerca. Da mesma essência é o conto “O possível Baldi”, em que o personagem parte de uma situação real e concreta de felicidade, que é contraposta ao estímulo de uma desconhecida na rua; então ele passa a mentir para não ver arruinada a felicidade que julgava tão concreta – a mentira como artifício de fruição estética da própria vida; mil aventuras ganham vida na boca do homem medíocre. E assim a felicidade real se mostra insuficiente diante do prazer das aventuras que nunca aconteceram. Não é diferente a característica essencial de “Um sonho realizado”, em que um sonho banal precisa ser reproduzido, encenado, montado para dar um sentido à vida.


Temos até aqui dois caracteres recorrentes nos contos de Onetti: a mentira e a aventura; mais exatamente, a aventura como mentira e a mentira como aventura , o que não é nada mais que a matéria prima do que chamei de estetização da vida. Outros elementos vão se agregar.

A recepção a que alude o título de “Bem-vindo, Bob” é ao mundo adulto, dos “homens feitos, quer dizer, desfeitos”, com suas rotinas estabelecidas, regulares, previsíveis, mesquinhas,  com as ambições estéticas inevitavelmente mortas. Volta o tema da maturidade em “Regresso ao Sul”, conto que traça a geografia urbana da paixão de um homem (des)feito. Geográfica é também a caracterização de “Esbjerg, na costa”, sendo que aqui aparecem nitidamente e de forma explícita outras cores que as tintas de Onetti já sugeriam: a melancolia (infância perdida, distância da terra natal, solidão) e a impossibilidade de compartilhá-la.

Nessa perspectiva, o conto-chave é “O álbum”, reunindo todos os aspectos observados até aqui. Os personagens de Onetti descobrem que têm um passado, dão-se conta disso num lampejo qualquer, em um momento banal – vem daí grande parte da nostalgia das suas histórias. Do mesmo modo, os personagens descobrem que não têm futuro, vislumbram a mera continuidade do presente, um vir-a-ser desprovido de potencialidades, na medida em que o presente encerra a impotência de transformação da vida – vem daí o caráter melancólico da atmosfera onettiana. Esta realidade nostálgica e melancólica só é superada através das experiências de estetização da vida. Diz a personagem:

                - Não importa que esteja chovendo, mesmo que chova assim durante cem anos isto não é chuva. Água que cai, sim; chuva, não. [...] É apenas água que cai e as pessoas têm de dar um nome a ela. Assim, nessa aldeola ou cidade chamam de chuva a água que cai; mas é mentira.
                [...] Explicou-me que só é chuva a água que cai sem utilidade nem sentido.

Esta transfiguração lírica de um fenômeno físico reflete a ânsia da literatura de Onetti: transfigurar a insuficiência da vida no prazer de viver sem utilidade nem sentido. “Já não me interessava ler ou sonhar” diz o personagem que ouvia as histórias narradas por uma misteriosa mulher, porque a fantasia havia se incorporado ao personagem, o seu dia-a-dia tornara-se fantástico porque vivenciava as venturas habitadas nas mentiras, com suas “peripécias e geografias”. A desilusão ocorre quando elas, as mentiras, tornam-se verdades, através de fotografias. Então, paradoxalmente, desacredita-se; a imagem (fotografia, reprodução) desacredita a imaginação (mentira, desejo) – talvez da mesma forma como a palavra desacredita a ideia, o sentido desacredita a palavra, a vida desacredita o sentido, a morte desacredita a vida, o tempo desacredita a morte, e de como a imaginação, a fantasia e a arte desacreditam o tempo.

Em Onetti, tornar real é desacreditar, e as mentiras é que são verdadeiras – algo assim como Pirandello com os seus seis personagens à procura de um autor. Mas o tempo, desacreditado ou não, passa e com ele passam os homens. Na década de 1950 Onetti torna mais complexas as suas palavras mentirosas. “História do cavaleiro da rosa e da virgem grávida que veio de Liliput” é um conto cansativo, mas que descortina a geografia de Santa María, cidade fictícia que, desde então, foi o cenário preferido das suas histórias. Que não se pense em Santa María como o lugar idílico, nem mesmo como depositária da ternura nostálgica incondicional do autor. O que o conto revela é também a geografia da mesquinhez dos seus habitantes progressistas (aliás, qualquer semelhança com nossas comunas aqui do extremo sul brasileiro não deverá ser coincidência tão fortuita). Novamente, mas por outro viés, no núcleo da matéria onettiana está a mentira, aproximando os extremos da sua linha: numa ponta a estetização da vida, na outra o mesquinho cotidiano de uma pequena cidade. Está formado o elo de ambivalência da mentira dos homens.

Ficam mais perversos os títulos. “O inferno tão temido” traz de volta as imagens fotográficas como elemento perturbador. Mas neste conto são os pecados – a luxúria, a vingança, o orgulho, a inveja – que explicam o “autêntico assombro da liberdade” e a consequente ameaça do inferno a que alude o título. O personagem sucumbe, paralisado (nostálgico e melancólico) ao assombro da liberdade, parecendo incapaz de superá-la pela transfiguração – ou mesmo de resignar-se como o velho Lanza.

Em 1960 Onetti executa o seu pulo-do-gato com “A cara da desgraça”, que dedicou à sua última esposa.  É um conto de elegância e destreza felinas, imprime figuras de promessas, sonhos, desejos, memórias, movimentos, cores, formas, texturas. O verão é quase personagem. Onetti chega ao seu ápice nesta história em que cada um dos detalhes enigmáticos cumpre uma função na narrativa, reveladas apenas ao final. O personagem vive entre um passado dilacerado e uma promessa de futuro, mas ambos são equívocos, como descobrirá o leitor. A moça da bicicleta é a musa da literatura de Onetti, pois carrega consigo um absurdo, um alheamento, um deslocamento, uma estranheza e uma melancolia que são muito caros à atmosfera dos seus contos. E mais não deve ser dito, para não frustrar o segredo dos olhos daquela moça aos leitores que ainda não tiveram o privilégio de conhecê-la.


Minto, ainda há uma observação a ser feita sobre algo que parece negligenciado nas abordagens sobre a obra de Onetti. Assim como em “O inferno tão temido”, cumpre função a tradição cristã neste “A cara da desgraça” – (aliás, não se poderia dizer que ela cumpre função ao longo de toda a obra, ainda que pela ausência?). Em determinado momento nos diz o personagem não saber rezar. Nos últimos instantes da narrativa, essa indicação despretensiosa ganha inesperada relevância, imiscuindo-se na resolução do mistério que percorre a história. Uma consulta ao site oficial revela quais são os autores preferidos de Onetti:

¿Sus autores preferidos? – La Biblia, Faulkner, Proust, Céline, Dostojewski, Cervantes, Hemingway.

A Bíblia foi a sua primeira resposta. Fica em aberto a possibilidade de uma análise aprofundada sobre a importância da tradição cristã e das narrativas bíblicas na obra do escritor uruguaio.


Em “Jacob e o outro” a narrativa é mais arrojada, mais visual e agressiva, e com atmosfera diversa, menos nostálgica e melancólica; parece mais próxima à literatura norte-americana. Mas o resultado julgo inferior, pois não há o encantamento estranho e sedutor – responsável por aquele sentimento de intimidade a que me referi no início deste texto.

A partir da década de 1960 os contos se tornam cada vez mais opacos, exigindo mais disposição por parte do leitor. Ainda há o brilho sedutor de “Tão triste como ela”, e o caráter maldito do impulsivo “Bem no trinta e um”, quase incompreensível.

Onetti deixou conselhos, curtos e incisivos, para escritores principiantes, em forma de “decálogo mais um” (ares bíblicos rondam novamente?). Diz o décimo: “Mentir sempre”.

Só mentiras fazem sentido.


Utilizei a edição da editora Record/Altaya, intitulada “Tão triste como ela e outros contos”, de 1976. Existe uma edição dos contos completos, Companhia das Letras, “47 contos de Juan Carlos Onetti”.

Lucas Petry Bender

quarta-feira, 9 de março de 2011

Quebrar as paredes

Conhece a Trupe Chá de Boldo? Eles têm um disco chamado Bárbaro, que não achei tudo isso. Prefiro o vídeo da música À Lina - que é, diga-se de passagem, a faixa mais afiada do disco. A letra tem o sabor de anarquia que a banda tenta imprimir na sua atmosfera.

O vídeo, então, é um troféu de criatividade - aprenda a enquadrar uma banda inteira em um espaço de exíguos metros quadrados. Não fica atrás a inventidade no uso de intrumentação improvisada. Um barato.

Este é, além do mais, um perfeito casamento entre letra e vídeo.


À Lina
Trupe Chá de Boldo - Composição: Felipinho Caos; Galo; Ciça
Para depois da tempestade
Para um novo amor chegar
Para que entrem os insetos
Para aqui dentro desembolorar
Para ver melhor a lua
Para a rua poder entrar
Para assistir ao beijo na esquina
Para a menina tomar um ar
Para quem curte o sol
Para quem quer se soltar
Para que as plantas todas
Aos poucos possam se aproximar
Eu quero quebrar as paredes
Nós vamos quebrar

terça-feira, 8 de março de 2011

Morte em Veneza

Segue a cena final de "Morte em Veneza", a mais feliz realização audiovisual deste planeta, com o famoso Adagietto de Mahler, a mais pungentemente bela música já ouvida (a beleza de Bach vai acima de pungências, que são sempre demasiado humanas).


Há um elemento trágico na minha juventude: temo esgotar a beleza ao conhecê-la, ao experimentá-la; evito o Adagietto de Mahler, pois duvido que possa existir algo mais belo, e me aflige a ideia de que experimentei, ainda tão jovem, o que há de mais sublime na existência; se o máximo prazer já foi desfrutado, o que restará daqui pra frente? Eu já temia desde muito pequeno: evitava brincar com meus brinquedos mais bonitos, tanto para preservá-los quanto para preservar a mim, evitando consumir-me na breve e intensa chama do prazer. A cada intenso prazer vai-se um pedaço da inocência, e quando não mais restar inocência, tampouco haverá prazer. Sim, Visconti é que sabe: ouvir o Adagietto é morrer no lugar mais belo do mundo.
“Sabedoria, verdade, dignidade humana, está tudo acabado” diz o personagem; digo eu que elas acabam depois de se ouvir o Adagietto, porque não é possível que tenhamos chegado a tal ponto de fruir a beleza sem que se tenha perdido algo irrecuperável, algo essencial. Mahler deve ter contas a acertar com Mefistófeles – e Visconti também; todos nós, pensando bem.
“Não há impureza mais impura que a velhice”. Está pronto para morrer aquele que não puder mais ser o semideus apontando para o infinito; o Aadagietto nos comunica este desamparo doce. Bem, a música e a cena verdadeiramente me arrepiam, então ainda tenho inocência suficiente.
Nos aguarda, em algum lugar, o penoso vislumbre do correr dos últimos grãos da ampulheta.  Mas enquanto houver um grão, um único que seja, fremindo de força vital antes da queda, haverá o prazer e a beleza da vida.

______________________________________________________________
Veneza é Veneza. De tantos artistas que já a estudaram e nela se inspiraram, eu quero lembrar do londrino Joseph Turner (1775-1851). 
“É em sua maturidade que Turner mais e mais se liberta da visão convencional das coisas. A experiência de Veneza, decisiva, permanece por anos a fio como o exemplo da sinfonia de tons e da aura poética que o pintor prossegue. A Baía de Rocky com Figuras já participa desse clima de sortilégio, como também Iates que se Aproximam da Costa, quadro pintado na Inglaterra mas reminiscente da lição veneziana, documentando sua fascinação pela atmosfera feiticeira da cidade italiana.” (Gênios da Pintura, nº 56, Abril Cultural, 1984)
"Chuva, vapor e velocidade"

segunda-feira, 7 de março de 2011

"Dance, dance senão estamos perdidos"


Documentário de Wim Wenders celebra a arte de Pina Bausch
Por Augusto Valente, para Deutsche Welle   
Pina, homenagem em 3D do cineasta à coreógrafa, estreia com sucesso no Festival de Berlim. Morte de Pina Bausch, em 2009, quase fez Wenders desistir de projeto de longa data.
"Pina, eu não vejo você nos meus sonhos. Quando você vai vir me visitar?", diz a voz de uma das dançarinas da companhia Tanztheater Wuppertal no filme Pina, enquanto a câmera enfoca seu rosto e sua reação às próprias palavras.

O comentário dos próprios integrantes sobre seu trabalho, o relacionamento pessoal, o legado e as saudades da coreógrafa Pina Bausch (1940-2009) são alguns elementos recorrentes no documentário dirigido por Wim Wenders, estreado mundialmente no domingo (13/02), no Festival Internacional de Cinema de Berlim.

Durante um bom tempo, os dois amigos vinham trabalhando num grande projeto: Wenders registraria em 3D os ensaios do Tanztheater Wuppertal, num road movie transcontinental. Até que, em 30 de junho de 2009, "aconteceu o inimaginável" – nas palavras do cineasta: Pina Bausch faleceu inesperadamente.

Toda a estrutura montada para a produção perdeu a validade e a razão de ser, a primeira reação foi o cancelamento sumário do projeto. Porém, passado um tempo de luto e reflexão, Wenders decidiu que era possível transfigurar a ideia original numa homenagem: não mais um filme com e sobre, mas sim para a artista.

Desejo de eternidade

É possível transportar para a tela – que seja em 3D – a magia do palco de dança, sobretudo a de um teatro-dança tão singular quanto o de Pina Bausch? Que a questão fique em aberto. Certo é que, pelo menos em um sentido, Wenders consegue ressuscitar o poder da coreógrafa.

Poucos minutos filme adentro, depois que se apresentaram os elementos de que ele será tecido – cenas filmadas no teatro e em locação, os pungentes depoimentos dos participantes, material de arquivo, Pina viva, no palco e nos ensaios, suas parcas, porém intensas palavras – tão logo essa trama se revela, um pensamento passa pela cabeça do espectador sensibilizado: "Sei que não é possível, mas quem dera que o filme nunca acabasse..."

E nisso Pina reproduz o sentimento que provocavam as tortuosas e avassaladoras Tanzabende da homenageada: o desejo de que o espetáculo nunca tivesse fim, que conseguisse vencer as fronteiras do tempo, assim como explodia o espaço do palco, as possibilidades dos corpos humanos. O anseio de que esse prazer artístico doloroso e desmedido fosse eterno.

Ou talvez quem esteja falando seja a infantil vontade de que Pina não tivesse morrido – de que gente como ela nunca morresse! Ou, quem sabe, se trate uma questão de sobrevivência: "Dance, dance senão estamos perdidos", ouvimos sua voz dizer, a certa altura do filme.

Sonhos de dança

Se as aparições de Pina Bausch em pessoa são o elemento mais dilacerante do documentário, nas obras filmadas em técnica tridimensional a artista está tão viva como ao criá-las, quase 40 anos atrás. De sua enorme produção foram selecionados trechos de A sagração da primavera (1975), Café Müller (1978), Vollmond (Lua cheia – 2006) e Kontakthof (Pátio de contatos).

Este último oferece a Wim Wenders a oportunidade de explorar a absoluta mobilidade temporal e espacial própria à sétima arte. Pois Kontakthof existiu em três versões: a original, de 1978, dançada pela trupe do Tanztheater, inclusive a própria criadora; a de 2000, com leigos de terceira idade; e a de 2008, com estudantes entre 14 e 18 anos. (Os trabalhos de ensaio dessa última versão foram, aliás, registrados por Anne Linsel no documentário Tanzträume [Sonhos de dança], lançado na Berlinale 2010.)

A montagem enfatiza o específico e o imutável em cada uma dessas encenações: é um senhor que em meio a uma volta se torna adolescente; é a menina que, ao levantar a cabeleira loura, tem 40 e tantos anos. São raros e preciosos momentos em que o cineasta se faz notar como tal, embora sempre reverencioso para com o objeto e sujeito do filme: a obra bauschiana.

3D or not 3D?

Neste terceiro round histórico da luta da cinematografia estereoscópica por um nicho permanente no mercado (os outros dois rounds foram na década de 50 e no final da de 70), Pina constitui um marco, segundo seus realizadores: trata-se tanto do primeiro filme de autor quanto do primeiro de dança a utilizar a técnica.

3D or not 3D, that is the question... mas uma questão que também não precisa ser respondida já. A justaposição com a metragem de arquivo de Café Müller, por exemplo, deixa óbvio onde o espectador de 2011 sai ganhando: a sensação de profundidade e a definição são infinitamente superiores, captam-se detalhes de textura da pele, cabelos, o suor dos corpos; por vezes tem-se a sensação de estar em meio aos dançarinos, dá quase para sentir o cheiro deles.

Entretanto, nos deslocamentos rápidos diante de fundo escuro, a cinematografia 3D também mostra suas (atuais) limitações, pois esses movimentos parecem pouco naturais, entrecortados. A impressão de perspectiva nem sempre é verossímil, por momentos as pessoas parecem figuras de papelão recortadas diante de um fundo. Talvez a técnica ainda precise amadurecer.

A quarta dimensão

Seja como for, a sensibilidade e empatia do documentarista com seu tema fica provada em minúcias com o registro sonoro de A sagração da primavera. Wenders faz ouvir, quase em pé de igualdade com a poderosa partitura de Igor Stravinsky, os ruídos no palco, os passos, o roçar de peles e tecidos, e, acima de tudo, as respirações.

Assim, após um clímax orquestral extenuante, o que se ouve, no lugar da pausa musical, é o resfolegar estertorado dos dançarinos. Um "detalhe" que aproxima, sim, o cine-espectador da experiência teatral. Mas que principalmente o lembra de que não se trata "só de dança", membros se movendo ao som da música, atléticos supermarionetes. Trata-se de uma arte que amorosamente expõe e examina seres humanos em estados extremos, suas fragilidades e paixões.

"Amor" era uma palavra frequente no vocabulário da coreógrafa, ao lidar com seus intérpretes, como eles próprios contam. Palavra tornada perigosa, de tão desgastada, mas que nesse caso ganha sentido novo e palpável. Amor é a quarta dimensão, que torna tão grandiosa essa homenagem cine-coreográfica dos amigos e colaboradores de Pina Bausch. A qual, asseguram, esteve presente com eles durante toda a filmagem.

Fonte: ViaPolítica/Deutsche Welle - Revisão: Alexandre Schossler

http://www.viapolitica.com.br/perfil_view.php?id_perfil=143#

domingo, 6 de março de 2011

Uma morena arco-íris pintando a noite de blues...

Vídeo de Morena Nascimento e Marcelo Poletto. Canção feita em agosto de 2009, em São Paulo.

Link no You Tube: http://www.youtube.com/watch?v=46nOBas3lc0&feature=related

Simples e belo. E ainda somos premiados com a generosidade da moça nos últimos segundos.
No concurso "Qual o nome mais bonito deste mundo?" Morena Nascimento aparece liderando. Estou dando uma pesquisada sobre ela, e ainda não encontrei nenhum defeito; se alguém encontrar, favor não comunicar.

sábado, 5 de março de 2011

Bach e os pigmeus do Gabão

Não há uma oposição tão óbvia entre ritmo e melodia quanto pretende a cultura ocidental. Se a batida de um tambor for acelerada a ponto de não distinguirmos os recortes de tempo (a partir de cerca de 10 ciclos por segundo), inicia-se o processo de formação da altura melódica - até que, de fato, o ritmo se torna melodia. Da mesma forma, mas no sentido inverso, se as frequências melódicas forem reduzidas a ponto de as vibrações se tornarem discerníveis, perceberemos que a melodia se decompõe em ritmo. O sampler permite a experimentação desse fenômeno, convertendo tom em pulso, o que revela um surpreendente paralelo entre as tradições musicais do planeta: "relações que a música européia desenvolveu no campo das alturas, a música africana desenvolveu no campo das durações". Está formado o enigmático e luminoso elo que une Bach aos pigmeus do Gabão.

O ritmo alfa, nosso padrão frequencial de funcionamento do cérebro, pulsa numa faixa que se situa justamente no limiar da passagem do ritmo à melodia. Dado que o ritmo alfa está na base das percepções captadas por nosso cérebro (como o demonstra o eletroencefalograma), inclusive de tempo, resulta que ele é o "nosso diapasão temporal, o ponto de afinação do ritmo humano frente a todas as escalas rítmicas do universo, e que determinaria em parte o alcance do que nos é perceptível e imperceptível".

Este é apenas um dos encantamentos da vida que nos revela o livro "O Som e o Sentido" de José Miguel Wisnik. O nome deste blog reverencia esta obra tão instigante, e faz eco ao desejo de ouvir o(s) mundo(s): "som dos anjos, dos astros, dos deuses, dos demônios; música dos homens, das musas, das máquinas".

Estão lançados, portanto, os principais temas deste blog: arte, música, literatura, ficção, realidade, sonho, percepção, consciência, transcendência, tempo. Simplificando: não há tema; este é apenas mais um blog habitando o lugar-nenhum cibernético.