sábado, 2 de junho de 2012

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RELAÇÕES DIAGONAIS



Depois que Camila me comparou com o pai dela – debaixo do toldo verde do nosso restaurante favorito, ela limpando o canto da boca com a unha de um dedo esmaltado de verde (ou era a luz esverdeada do toldo que deu essa impressão?), sendo que ela nunca fazia esse gesto, nunca ela foi assim de uma delicadeza tão sutil e ardilosa, muitas vezes eu vi os seus guardanapos repletos de manchas de batom, amarrotados sobre a mesa, eu acho que aquele gesto incomum dela antecipou que aquele almoço não ia terminar bem – depois que ela me disse que eu estava apegado demais em coisas que deviam ficar no passado e que isso estava me recalcando e me deixando agressivo, exatamente como o pai dela era, eu nunca mais consegui olhar para uma mulher que eu desejasse sem levar em consideração que certamente não valia a pena começar algo cujo final já estava estampado em caracteres tristes e sombrios nas suas caras.

Clara, por exemplo, cumpre integralmente os requisitos da promessa de felicidade que sua beleza deslumbrante espalha pelo ar, mas não é difícil prever que um relacionamento com ela vá terminar ali adiante, de forma melancólica ou bélica, e que isso é tanto mais provável quanto maior for o esforço de cada um para que isso não aconteça. É o que a experiência tem me ensinado, é o que eu comecei a perceber assim que saí de baixo daquele toldo verde, me sentindo ressentido, barrigudo e intolerante como o pai de Camila.

Depois que o sujeito acumula uma certa carga de derrotas, acontece o surpreendente espetáculo da parábola do homem que não tem nada a perder. Percebe-se que nada vale a pena, e portanto tudo está disponível de forma imediata e inconsequente. A partir de então, qualquer vida que passe diante do sujeito parece ser mais interessante do que a sua própria, e não demora para que ele fique novamente enredado nas malhas das misérias e dos triunfos da existência sobre a Terra. E aí começa tudo de novo, como se nunca tivéssemos aprendido nada. Cometem-se os mesmo erros, e alimentam-se as mesmas expectativas. Põe-se tudo a perder, novamente.



Conheci Clara na Marcha das Vadias. Todo aquele bando de mulheres, umas pintadas, outras seminuas, fazendo uma barulheira dos diabos, e eu só queria tomar meu chimarrão em paz na praça. Ela veio e sentou-se ao meu lado no banco pra ajeitar a sandália que estava escapando do pé. Viu que eu usava uma camiseta com a estampa da Amy Winehouse e puxou assunto, com o corpo curvado, ainda debruçada sobre a sandália. Lamentou a morte da Amy, mas disse que muito maior havia sido a perda de Mercedes Sosa, e emendou alguma coisa sobre a força dos povos latino-americanos e mais alguma coisa que eu não lembro bem, sobre opressão e resistência. Me pareceu que era lésbica, mas não pude deixar de desejar ardentemente colocar todos os meus dez, não!, meus vinte dedos e mais alguma coisa naquela carne latina e politizada. Depois que ela afastou o cabelo do rosto eu pude perceber que, a despeito de todos os prognósticos contrários, era possível que eu ficasse apaixonado por aquela criatura de olhar tão vívido.

Ela liga a TV e senta toda estirada no sofá com aquele livro que fala do tal sujeito pós-freudiano, lê uns trechos em voz alta pra mim e fica me provocando com as questões que o autor coloca, de fundamental importância para o curso de graduação dela, e também, conforme ela me explica, para a compreensão do mundo atual. Às vezes eu presto mais atenção na TV.

- A novidade na condição do sujeito pós-freudiano é que ele não tá mais pautado pelos grandes valores da autoridade, entende? Os grandes vetores verticais de autoridade foram substituídos pelas relações horizontais.

- Para Dona Jucélia, a atividade de criação de borboletas em cativeiro não é apenas uma fonte de renda, mas uma terapia.

- Estamos assistindo ao final da situação orientada em torno da autoridade paterna, sabe como é, que pautou os indivíduos até aqui. Não se trata mais de decifrar os recalques, entende, mas de cifrar a sua individualidade. Assumir o seu próprio caos, como um poeta de si mesmo, libertado pela rede de relações horizontais, livre para o gozo.

- Desde que eu passei a ter um borboletário em casa eu me sinto muito melhor, acabou a depressão, acabou com meu nervoso. Quando tem algo pra cuidar assim, com dedicação e atenção, o dia fica preenchido e não se tem nem tempo de pensar em bobagem, né?

As duas sorriem ao mesmo tempo. Clara e Dona Jucélia. Me dá uma vontade de dizer pra elas que eu me sinto uma diagonal em pleno cruzamento. Levanto pra ir até a geladeira pensando que talvez ninguém ainda tenha pensado em manter relações diagonais. Abrindo a garrafa, ainda consigo ouvir a voz da Clara, mas a TV não. Já não sei se ela está lendo o livro ou simplesmente despejando sobre mim tudo o que passa pela sua cabeça.

- Ao contrário do que se pensa – continua Clara lá da sala – as pessoas atualmente não estão assim tão desorientadas, tão perdidas, tão entregues ao acaso, como querem fazer crer essas religiões todas e os discursos conservadores e os diagnósticos psiquiatrizantes.

Ainda na cozinha, por um instante minha consciência é chamada a observar a cor esverdeada do vidro da garrafa; de súbito, o verde insinua-se pela parte de trás dos meus olhos, invade meu cérebro, percorrendo minha espinha e me deixando abandonado às minhas próprias reminiscências. Quase uma epifania, vejo o verde do toldo, o verde das unhas, o verde da garrafa, vejo tudo esverdeado e pressinto o fantasma daquele gesto de limpar o canto da boca com a unha. Sinto a angustiante certeza de que está tudo para acabar, muito em breve, agora mesmo.

- É só pensar nesses jovens que se expressam com tanta intensidade através de esportes radicais, de música eletrônica, de grafismos incríveis. No passado, na geração dos nossos pais, por exemplo, a inconformidade da juventude era agressiva, botar fogo em prédio, quebrar o pau com a polícia, destruir qualquer coisa. Concentravam seus esforços de revolta contra o controle, enquanto o sujeito pós-freudiano centra-se no autocontrole.

Talvez Camila tivesse razão. É possível que eu nunca tenha superado a morte trágica dos meus sonhos. Apanho a garrafa e volto pra sala, decidido a finalmente dizer o que estava entalado há meses:

- Escuta, sabe o que eu acho? Sabe o que eu realmente penso? – ela ergue os olhos do livro e me ouve – Pra mim Mercedes Sosa é igual à Amy Winehouse. Ou Billie Holiday, ou quem sabe Janis, ou Elis. Não vejo diferença essencial. São artistas fantásticas, insuperáveis, que nos levam o mais longe possível com sua música. Não preciso entender o que elas cantam, não preciso me preocupar se uma é ativista social, a outra uma junkie, ou maníaco-depressiva, ou suicida. Parem de sempre associar Mercedes Sosa com ativismo latino-americano, como se ela precisasse disso para se justificar! Basta sua voz e sua arte, não preciso de nota de rodapé pra valorizar uma artista desse calibre! Graças a la vida, sei viver a arte de Mercedes Sosa com a mesma entrega e a mesma energia com que vivo Amy Winehouse! Será que os tais povos latino-americanos podem se permitir ao menos essa alegria?! Hein?!

Talvez eu tenha finalmente aprendido alguma coisa, com todos aqueles cacos verdes espalhados pelo chão, como borboletas mortas, e os soluços de choro da Clara. Eu apenas começo a me conhecer, recém vão desabrochando minhas facetas, principio a me fascinar com as minhas metamorfoses, descobrindo que meu poder de ser eu mesmo é múltiplo e fantástico – quando então sou forçado a perceber que é preciso sufocar pelo menos uma das minhas facetas a fim de realizar qualquer coisa duradoura. Tenho de admitir, resignado, que é necessário restringir a mim mesmo para não ficar completamente entregue àquela espécie de tentação desnorteadora que me leva à deriva pelos dias e noites. Fico pensando no que é que a Dona Jucélia vai fazer da vida quando se cansar das borboletas.

Espanha, 1998 - Harry Gruyaert