domingo, 27 de novembro de 2011

II. Andante


St. Tropez, França, 1979 - by Elliott Erwitt

Este poeminha tristonho me foi sugerido por Hannah Arendt, quando ela se refere ao processo que lançou o homem moderno às profundezas do seu próprio eu, após o advento da dúvida cartesiana. Recolhido dentro de si mesmo, entregue ao infinito jogo metalinguístico da sua própria mente, o homem tornou-se íntimo da introspecção e estranho ao senso comum. "Os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e os desejos", afirma. É, eu sei.


só sobrou desejo
só sobrou
só, sobrei
soçobrei

[devo parar por aqui? ou continuar? dúvida cartesiana...]

soçobrou razão
só sobrou vontade
soçobrou fé
só sobrou apetite
soçobrou esperança
só sobrou desejo

sobrou só sobrei


domingo, 20 de novembro de 2011

I. Allegro

"Revoada de gansos silvestres" - Suzuki Harunobu (1766)

Olhei, olhei, atento aos detalhes. Por que o título desta gravura? Os títulos das antigas gravuras japonesas (ukiyo-e) não costumam ser enigmáticos, e sim descritivos. Aqui temos uma cena em que duas cortesãs se voltam para o koto, instrumento de cordas semelhante à cítara. A primeira mulher folheia um livro de peças musicais. A outra apanha a palheta. Mas que revoada de gansos?

Os ukiyo-e refletem a sensibilidade dos instantes fugazes e plenos de vida. Em geral, captam figuras humanas em momentos em que a beleza se manifesta em discreta alegria, realçando a fluidez das formas, que são a própria estampa do contínuo movimento da vida.

Harunobu celebra a beleza feminina, assunto dentre os preferidos daqueles artistas; mas celebra também a música, pura fluidez invisível. E grava no movimento do voo das aves a música elegante e livre da vida fluindo.

Koto: a afinação é feita através dos trastes móveis, aquelas peças brancas sob as cordas.


Revoada de gansos silvestres: cena das mais belas dessa nossa vida que flui em música de formas-movimentos.


Fim do enigma. Estava lá a revoada, debaixo dos meus olhos, debaixo das cordas, debaixo das formas fugidias, esperando por uma afinação do meu olhar. Obrigado, Harunobu.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

10 mulheres cinematográficas


Não são as dez mais belas atrizes. Não são as dez melhores personagens. Não são as dez melhores interpretações. São as dez melhores misturas disso, são as minhas dez mulheres inesquecíveis do cinema. Chega de explicação.


10 - Sue Lyon  (Lolita, dir. Stanley Kubrick, 1962)
A conspiração Nabokov-Kubrick vingou. Como nunca li o livro, tenho que me limitar ao segundo, que era um grande filho da mãe. O desgraçado conseguiu transformar uma loirinha bem padrãozinho american way of life num tormento dos diabos; uma adolescente estúpida no alvo do maior dos desejos. Deixo pro Freud explicar por que é que essa cena não me sai da cabeça.


9 - Cate Blanchett (Não Estou Lá, dir. Todd Haynes, 2007)
Quem diria que num filme onde seis atores interpretam seis facetas de Bob Dylan seria justamente uma atriz que daria vida ao Dylan mais dylanesco?


8 - Marie-France Boyer (As Duas Faces da Felicidade, dir. Agnes Varda, 1965)
Tantos anos vendo propagandas de loiras de olhos claros e dentes reluzentes devem ter tido algum efeito. Na verdade, é o jeito que ela meche a cabeça. Sei lá, ela dá umas osciladas, tem uma ginga de pescoço ou coisa assim que a faz irresistivelmente encantadora. Além disso é tudo muito claro nela, cristalino, ensolarado, refulgente, iluminado. É quase um sol ambulante.


7 - Anna Chlumsky (Meu Primeiro Amor, dir. Howard Zieff, 1991)
Agora adentramos no terreno do Amor puro & verdadeiro. Foi minha primeira musa do cinema. O par de olhos mais vivos que eu já vi. Filme tão marcante da infância; hoje quando assisto só fico olhando pra pernas da Jaime Lee Curtis. Droga.


6 - Rinko Kikuchi (Babel, dir. Alejandro G. Iñárritu, 2006)
Essa listinha tá muito inofensiva, chegou a hora de colocar alguma mulher mais complicadinha por aqui. Virgem, surda, perdida, agressiva, derrotada. Selvagem, às vezes. Desconcertante, sempre.


5 - Uma Thurman (Pulp Fiction, dir. Quentin Tarantino, 1994)
Mia Wallace é uma homenagem ao cinema, como tudo o mais em Tarantino. Eu vejo nela, pelo menos, alguma Anna Karina do Godard e a Barbara Steele do Oito e Meio. Seja como for, é uma mulher eletrizante, veneno de alta voltagem, overdose de campos magnéticos que a tudo atrai e arrasta.


4 - Natalie Portman (O Profissional, dir. Luc Besson, 1994); (Closer, dir. Mike Nichols, 2004); (Cisne Negro, dir. Darren Aronofsky, 2010)
Natalie Portman é capaz de deixar alguns tarados em estado de pura obsessão. Não é meu caso. Pelo menos é o que eu pensava, até este momento. Acabo de perceber que a moça nascida em Jerusalém poderia ocupar três posições deste ranking, com as três personagens acima. Atire a primeira pedra quem não ficou assim meio confuso com a guriazinha de O Profissional. A segunda pedrada será daqueles que não começaram a se encantar já na cena de abertura de Closer, em que a moça anda ao som da delicada trilha de Damien Rice. A pedrada de misericórdia está reservada aos que não saíram do cinema transtornados após a negra metamorfose do cisne. (Pensando bem, minha obsessão não é assim tão grave: alguns certamente lembrariam da Rainha Amidala de Star Wars. Tem muito louco neste mundo).


3 - Ingrid Thulin (Morangos Silvestres, dir. Ingmar Bergman, 1957)
Devo dizer que a partir daqui é uma competição muito fácil de ser resolvida. Thulin põe todas as anteriores no chinelo com sua fascinante Marianne, personagem de encanto desafiador, dignidade orgulhosa e obstinada sensibilidade. Seu embate com o professor Borg é um poderoso estimulante aos olhos e à inteligência do espectador. Lembro como fiquei desconcertado com a sua primeira aparição no filme, de roupão branco, recostada ao batente da porta, numa postura de divina indolência. Acho que vou mandar fazer uma estátua dessa sueca para colocar aqui em casa.


2 - Scarlett Johansson (Encontros e Desencontros, dir. Sofia Coppola, 2003)

Quem não lembra da cena de abertura? Foco numa bela e grande bunda vestindo uma calcinha semitransparente. E apesar disso, nenhum traço de vulgaridade. Charlotte foi meu protótipo de mulher perfeita durante uns anos: linda mas discreta, gostosa mas contida, exuberante mas melancólica. Não posso simplesmente desprezar meu passado; ela permanece sendo um modelo de suave feminilidade e um símbolo de parceria entre indivíduos em crise. Além do mais, é evidente que há muitos outros motivos para se admirar o início da carreira desta atriz que agora se divide entre Woody Allen e abacaxis blockbusters.


1 - Nicole Kidman (As Horas, dir. Stephen Daldry, 2002)
Não me resta saída, preciso apelar para o mais covarde dos argumentos: não tenho palavras para comunicar, elas me são insuficientes, é necessário ver o filme e ponto final. Nicole Woolf. Virginia Kidman. Os gestos. Os olhares. As intenções. As angústias. As posturas. O nariz. A coragem. Ah, pro diabo com as outras nove. Tem algo aqui de muito mais poderoso, e eu fracasso completamente em tentar dizê-lo.



[Antes que alguém meta o bedelho nas minhas escolhas, que pelo menos perceba quão interessante é olhar as fotos uma após a outra, prestando atenção nos olhares e nas posturas, muito mais comunicativas do que minhas palavras inúteis. De qualquer forma, eu sei que amanhã eu vou estar arrependido destas escolhas, pois hei de lembrar de outras, muitas outras personagens encantadoras.]

domingo, 6 de novembro de 2011

Mais bonita que a minha dor

 Claudia Cardinale e Marcello Mastroianni me ajudam a dizer o indizível (cena de "8 1/2", dir. Federico Fellini, 1963):



Ela é toda olhos, cabelos, seda, madura, de bronze. E tem perfumes coloridos sobre cada uma das cinco cavidades do rosto. Na boca os dentes ressoam notas musicais brancas, de marfim esmaltado. Na testa uma faixa cor de rosa, como se adornasse uma virgem escolhida pelos deuses. Cabelo alvo e liso como um espelho d'água. Olhar úmido salino de anil santificado. O sorriso mais raro do mundo, delícia de anéis de Saturno. É a face brilhante e clara da felicidade, destilando elegância parisiense. Mil carros de corrida, mil germânicos embriagados, mil escravas inesquecíveis, tudo a girar no turbilhão da língua que abraça na longa chama loura de alegria - alegria ofuscante como um raio de sol nos olhos claros da vida. Amazona de uma Europa escondida na montanha. Bailarina a se derramar em rios de leite dourado. Câncer da conquista da Cocanha. Utopia a se machucar na imensa árvore noturna. Cometa de fogo ofegante. Estrela de natal.