domingo, 25 de dezembro de 2011

A Ceia de Emaús, 1602, de Caravaggio


Natal é um pé no saco - mas eu gosto do modo como Hannah Arendt destaca o traço indelével do cristianismo na nossa cultura:

"Entregues a si mesmos, os negócios humanos só podem seguir a lei da mortalidade, que é a única lei segura de uma vida limitada entre o nascimento e a morte. O que interfere com essa lei é a faculdade de agir, uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana que, por sua vez, interrompe e interfere com o ciclo do processo da vida biológica. Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para começar. No entanto, assim como do ponto de vista da natureza, o movimento retilíneo da vida do homem entre o nascimento e a morte parece constituir um desvio peculiar da lei natural comum do movimento cíclico, também a ação, do ponto de vista dos processos automáticos que aparentemente determinam a trajetória do mundo, parece um milagre. Na linguagem da ciência natural, é 'o infinitamente improvável que ocorre regularmente'. A ação é, de fato, a única faculdade milagrosa que o homem possui, como Jesus de Nazaré, que vislumbrou essa faculdade com a mesma originalidade e ineditismo com que Sócrates vislumbrou as possibilidades do pensamento, deve ter sabido muito bem ao comparar o poder de perdoar com o poder mais geral de operar milagres, colocando a ambos no mesmo nível e ao alcance do homem.
O milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e 'natural' é, em última análise, o fato do nascimento, na qual a faculdade de agir se radica ontologicamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem nascido. Só o pleno exercício dessa capacidade pode conferir aos negócios humanos fé e esperança, as duas características essenciais da existência humana que a antiguidade ignorou por completo, desconsiderando a fé como virtude muito incomum e pouco importante, e considerando a esperança como um dos males da ilusão contidos na caixa de Pandora. Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e glorioso como nas breves palavras com que os Evangelhos anunciaram a 'boa nova': 'Nasceu uma criança entre nós'."
("A Condição Humana", de Hannah Arendt, trad. Roberto Raposo, ed. Forense Universitária, 2009, pág. 258-259)

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