sábado, 10 de março de 2012

ESQUECER OS MORTOS

Acho que minha filha devia adotar outro estilo, parar de usar sempre All Star. Não é um tênis feio, mas fico incomodado quando noto algo em comum entre colegiais, anarquistas, empresários, intelectuais, ripongos, metidos, bundões, lésbicas, playboys, baderneiros, saudosistas e desocupados – do Eike Batista ao Lobão, todo mundo usa All Star. Essa união de forças tão díspares em torno de um interesse comum é que faz com que eu me sinta ameaçado. Prevejo exércitos inteiros perfilados, alinhados a partir daquele bico emborrachado branco.

- Talvez tu devesse ser menos resistente à moda – me disse a mãe da minha filha. Já minha namorada teve uma postura diferente, disse que eu sempre arranjava um motivo para implicar com minha filha e que eu dava importância demais a coisas sem importância. Não sei se ela se referia à minha filha ou ao All Star.

Ontem eu quase conversei sobre isso com a minha filha, quando fui buscá-la da aula de inglês. Eu queria mesmo ver a reação dela, o quão imatura, o quão feminina, o quão insegura seria. O que me fez desistir do assunto foi uma lembrança da minha juventude que me assaltou enquanto eu a aguardava na calçada. Na verdade foi o cheiro que exalava a casa abandonada que fica bem ao lado do prédio do cursinho de inglês. Era um odor de coisa velha, que me fez desencostar das grades e torcer o meu corpo em direção à casa, para observá-la. Os capins entre as lajotas do pátio, os detritos pelo chão, o lixo na soleira da porta, as manchas de umidade, as frestas apodrecidas, tudo aquilo desprendia um aroma de velharia inútil, de derrota, de impotência, de final sem glória. Era o mesmo cheiro que tinham os objetos do meu tio, quando ele morreu, décadas atrás, e a casa ficou vazia e fechada até que fôssemos lá recolher os espólios aos quais os vivos têm direito; depois de alguns dias completamente inativa, a casa mais parecia um grande sepulcro repleto de objetos mortos. Fiquei horas inteiras sozinho no quarto dele, mexendo nas gavetas. Eu até hoje não sei ao certo do que meu tio vivia, mas ele gostava muito de pintar, desenhar, ilustrar – tinha coleções inteiras de pincéis, lápis de cor, giz de cera, tintas, folhas de papel, grafites, canetas, gabaritos, réguas e todo um microuniverso de objetos que, apesar de decadentes e opacos, agradavam meus dedos e olhos.

Foi só ontem, esperando minha filha diante daquela casa abandonada, que percebi que aquilo tudo tinha um cheiro, e que este cheiro estava impregnado em mim. Eu o levava comigo no meu corpo toda manhã, quando dirigia até o trabalho; eu tinha dormido com ele todos esses anos – ele resistira aos inúmeros banhos, suores, perfumes e secreções que cobriram meu corpo desde aquela longínqua tarde. Talvez minha ex-mulher tivesse feito algum comentário comigo sobre isso, tentado me alertar, me despertar, e provavelmente eu não a tenha compreendido bem.

(A minha filha nem desconfia, mas eu usava All Star em meados dos anos oitenta, quando tinha a idade dela). Na saída da aula de inglês reparei que muitos dos jovens vinham rindo alto, alguns poucos calados, mas todos usavam All Star. E eu não posso negar que as colegas da minha filha ficavam interessantes de All Star, eu me sentia atraído por aqueles bicos rijos de uma brancura juvenil. Tive vontade de passar a mão, lamber, esfregar o rosto naquelas superfícies lisas e limpas. Enquanto dirigia, imaginei uma daquelas loirinhas chutando minha cara, quebrando meu nariz a pontapés com o bico do All Star, e depois enxugando o sangue até que voltasse a brilhar imaculada a alvura emborrachada. Não é difícil manter-se limpo quando se é jovem – pelo menos suficientemente jovem para não sentir o próprio cheiro.

Liguei o rádio do carro pra me distrair. O noticiário local comentava com uma ênfase polêmica o caso de um menor que teria matado a própria mãe, com uma faca, após uma discussão. O jovem estaria sob influência do crack, e isso parecia suficiente para explicar tudo, para levar a termo todos os argumentos. É provável que ele usasse All Star, pensei, mas o noticiário não dava nenhuma informação sobre isso. Olhei pra minha filha, mas ela já tinha enfiado os seus headphones nas orelhas, devia estar escutando alguma dessas bandas novas que surgem na internet e não tocam nas rádios. - O que é que tu tá ouvindo aí? - perguntei gesticulando à frente dos olhos dela. - Que banda tu tá escutando? - repeti depois que ela afastou um dos fones da orelha.

Não sei onde foram parar todos aqueles materiais de desenho. Com o tempo a gente esquece os mortos – e passa a dar valor a coisas sem importância.


Senegal, 2011 - by Finbarr O'Reilly

Um comentário:

  1. Olá Lucas,

    é para lhe comunicar que o Noodles, Lamash, Kleen, Shoshanna, Yagami e André Passos, saimos do laranja e criamos nosso blogue de cinema:

    http://sonatapremiere.blogspot.com/

    e um outro, mais variado,

    http://projetochernobyl.blogspot.com/

    como sabe, sua visita será muito bem vinda.

    Abraços,
    Sonata Première

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