quarta-feira, 25 de abril de 2012

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PRINCIPALMENTE NADA


Tire a ilusão de um homem e ele é um tolo morto de tédio, e abaixo da frase uma imagem em que Fanny, Alexander e a mãe estão deitados numa cama, cada um deles em um plano, gradativamente mais desfocados.
Valentina tem umas montagens com imagens e frases que ela usa no seu perfil do facebook, são em geral cafonas e banais, mas às vezes ela acerta, às vezes ela mexe mesmo comigo, com as minhas emoções e lembranças. Não sei se é por causa disso, mas de uns tempos pra cá tenho tido um sonho recorrente, pode-se dizer que é um pesadelo, talvez:  Valentina me observa através de um falso espelho.


Tem uma estranha sentada ao meu lado no ônibus, quero dizer uma desconhecida, com quem evidentemente eu não posso conversar, primeiro porque não há nada a ser dito e segundo porque qualquer coisa que eu dissesse provavelmente deixaria uma má impressão, do tipo que cara chato, ou que conversinha besta, ou mesmo que cara que se acha o tal - e isso se eu chegasse a me fazer compreender, superando a péssima dicção e a gagueira salivante que inevitavelmente se apossam da minha boca quando pretendo iniciar uma conversa, especialmente com estranhos - e então eu passaria a vê-la nas manhãs seguintes sorrateiramente evitando o banco ao meu lado, fingindo não ver que ei! há um lugar vago bem aqui do meu lado, tu não precisa ficar aí de pé nesse corredor atulhado, correndo o risco de ter a bunda assediada por uma mão indiscreta (de um operário, certamente), eu tenho superior completo e bons modos, mas talvez o assédio seja preferível a ter de suportar minha presença incomodamente lateral e tristemente esforçada por parecer simpática.

Alice ou Sara, porque ela tem cara de Alice ou Sara, provavelmente permanecerá sendo eternamente uma estranha para mim, apesar de estar neste ônibus todas as manhãs de todos os dias da semana. (Alice ou Sara ainda vai ao colégio, usa uniforme azul e uma mochila, enquanto eu me dirijo ao meu trabalho com a barba feita). Não há nada a ser dito (mas no plano-sequência 1 eu digo: oi, esse rímel fica muito bem nos teus olhões). Isso me faz lembrar da Valentina, quando a gente conversou pra valer pela primeira vez. Ela estava no fundo da sala de aula, durante o intervalo, lendo e rindo. Dom Quixote, então existe alguém que lê Dom Quixote, esse alguém é uma jovem com grandes olhos delineados por um fio negro, e parece que só eu estou percebendo que tremenda promessa de felicidade está bem ali ao alcance! (No plano-sequência 2 eu digo: sabia que quando tu prende o cabelo assim a manhã parece mais leve?) Ela me diz que Dom Quixote não é a coisa mais engraçada que ela já leu. Narra uma história meio maluca que diz ser um conto que leu na internet, em que um sujeito tenta copular (ela usou essa palavra) com a famosa estátua dinamarquesa da Pequena Sereia, dando origem a um novo complexo sexual, a tara por estátuas e monumentos. Tendo seu intento frustrado em função da ação de terceiros, em represália o maníaco decepa a cabeça de bronze da sereia, provocando comoção da comunidade internacional, caça às bruxas da perversão do mundo, vindo ao sol do conhecimento público inúmeras condutas fetichistas, taras, obsessões, como um sujeito milionário que tem uma coleção de estátuas femininas (Vênus de Milo, Santa Maria, Estátua da Liberdade, etc) com orifícios nas mãos e bocas e genitais, adaptados para perversões (ela repetia muito essa palavra) sexuais, o que não deixava de ser um avanço com relação às bonecas infláveis, que são mulheres sem personalidade. (No plano-sequência 3 eu ponho minha mão sobre a dela, com muito cuidado mas bastante decidido). Conta muito hoje em dia a personalidade da mulher, diz o tarado à reportagem após ser preso, e a Sereia Pervertida se torna um grande sucesso de vendas no mercado erótico masculino, provocando estrepitosa reação feminina: estátuas gregas com ereções! monumentais ereções! basta daqueles pingulins mirrados, isso sim é pau duro, não amolece nunca! diz uma mulher à reportagem, de qualquer forma o sêmen há muito deixou de ser fundamental, completa ela. (E tem outro plano-sequência em que passo a mão por dentro da cintura do uniforme azul dela, sem me preocupar se as pessoas no ônibus estão observando). Finalmente a humanidade alcança o estágio do sexo público, as praças se tornando locais privilegiados para todo o tipo de práticas fetichistas com estátuas, monumentos, bustos e até obeliscos! Isso era a coisa mais engraçada que ela já lera, e na época eu concordei.

E agora, tendo Alice ou Sara ao meu lado e refletindo sobre uma possível sequência à nossa história que nunca começou, relembro aqueles meses curtos e intensos ao lado de Valentina. Penso na entropia avassaladora da nossa relação, que não mais de quatro meses depois daquela divertida narração no fundo da sala levou-nos a uma monumental indiferença um para com o outro. Éramos atraídos por uma força termodinâmica que só poderia mesmo levar à desagregação, e talvez a estátua da sereia decapitada fosse o símbolo da nossa condição. Na verdade a depredação daquela magnífica sereia anunciava o início de uma era, de uma nova e angustiante era do mundo - ainda que jamais acontecesse tal depredação, que estivesse tudo dentro das nossas cabeças perdidas. Há algo de podre no reino das nossas fantasias.



Faz muito que não vejo Valentina, me limito a bisbilhotar em segredo no seu facebook e a sonhar com a sua inexplicável presença invisível por trás dos espelhos.

Música preferida: Yesterday.

Sobre mim: de uns tempos pra cá se tornou impossível sentir-me tranquila, em paz, confortavelmente instalada em mim mesma, leve – vocês sabem, sem tristeza nem culpa, mas também sem explosões doidas de alegria, arroubos de ousadia, agitações dissipadoras, enfim, parece que desaprendi, parece que me foi tirada, na verdade, a capacidade de não ficar submetida ora a um extremo, ora a outro. A vida parece estar sempre exigindo, impondo: o maldito céu ou a porra do inferno; o prazer ou o fracasso; a necessidade quase física da vitória ou o mergulho negro no abismo. Droga, não sou só eu, vocês sabem, droga, isso é assim mesmo.

Ok Valentina, acho que entendo. Yesterday faz parecer que não precisava ser assim, não é? faz parecer que não era assim, e então será que desde 1965 tornaram-se impossíveis as yesterdays e todos tivemos de nos contentar com ruídos ou silêncio, com o mais intenso dos prazeres (superando em muito o que sequer sonharam as gerações passadas) ou com a dor mais irremediável, e nunca mais soaram as notas tão despojadamente harmoniosas e tão despretensiosamente belas de Yesterday entre nós, como soavam antes? O que foi que aconteceu nesse meio tempo? Onde foi parar aquela calma contente? Por que a angústia tomou conta de tudo, inclusive do prazer, inclusive da alegria? Hoje explode-se de amor e de ódio, de romance, de vingança, mas a neutralidade sublime de Yesterday se perdeu, não é? Mas nossos pais e mães não estão mais conosco, Valentina, nós crescemos e ficamos sós, nós crescemos e não temos certeza se realmente aprendemos alguma coisa, vamos crescendo e os clichês se tornando profecias, vamos envelhecendo e ficando progressivamente mais desfocados, não é isso? (Quem é que vai te salvar, me pergunta Valentina através do espelho, em qual deles tu quer acreditar pra não entregar os pontos de uma vez? Beatles? Bergman? Dom Quixote?)



É melhor assim, Alice ou Sara, melhor que ninguém tome iniciativa, que nossa história não tenha sequência, que tu continue sendo essa aparição iluminada da manhã, essa pequena sereia dinamarquesa de uniforme e mochila e cabelo preso de um jeito diferente nos dias que tu decidir que assim deve ser, até porque, Alice ou Sara, eu não quero que percamos a cabeça, não quero te ver desbotando a cada exigência minha, não quero ver desvanecer o mistério diário da tua presença. Continue assim, apenas continue assim.

 

TUDO PODE ACONTECER NA VIDA, em grandes letras garrafais brancas sobre fundo preto (oh! mais uma das cafonices que acalentam a alma feminina?), mas logo abaixo em letras muito pequenas: Principalmente nada.

Às vezes Valentina acerta mesmo.

(No plano-sequencia final eu digo: prometo nunca morrer, Valentina - e Alice ou Sara deve pensar que sou um tolo.)



olhares - por Claudio L. Bender