quinta-feira, 10 de março de 2016

Dá o que pensar

As palavras de Nietzsche são de 1888, mas o exercício da liberdade interior é atemporal. Saberemos nos responsabilizar por "tarefas demoradas"?

"Nossas instituições não prestam mais: acerca disso somos unânimes. Mas isso não se deve a elas, e sim a nós. Depois que perdemos todos os instintos dos quais brotam instituições, perdemos as próprias instituições porque nós não prestamos mais para elas. O democratismo sempre foi a forma decadente da força organizadora [...] Para que existam instituições, é preciso existir uma espécie de vontade, instinto, imperativo, que seja antiliberal até a maldade: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos, de solidariedade entre séries de gerações para frente e para trás in infinitum. Caso exista essa vontade, se funda algo como o imperium Romanum [...] O Ocidente inteiro não possui mais aqueles instintos dos quais brotam instituições, dos quais brota futuro: talvez nada desagrade tanto ao seu 'espírito moderno'. Vive-se para hoje, vive-se muito depressa – vive-se de modo muito irresponsável: precisamente isso é chamado de 'liberdade'. Aquilo que faz das instituições o que elas são é desprezado, odiado, repudiado: basta ouvirem a palavra 'autoridade' e as pessoas acreditam estar na iminência de uma nova escravidão. [...] Um testemunho é o casamento moderno. É algo evidente que o casamento moderno perdeu toda a racionalidade: o que não constitui uma objeção ao casamento, mas à modernidade. A racionalidade do casamento - ela se encontrava na responsabilidade jurídica exclusiva do marido: assim o casamento tinha um centro de gravidade, enquanto hoje ele manqueja das duas pernas. A racionalidade do casamento - ela se encontrava na sua indissolubilidade por princípio: assim ele tinha uma voz que se sabia fazer escutar frente ao acaso do sentimento, da paixão e do instante. Ela se encontrava igualmente na responsabilidade das famílias pela escolha dos noivos. Com a crescente indulgência em favor do casamento por amor, foi eliminada terminantemente a base do casamento, aquilo que faz dele uma instituição. Em hipótese alguma se funda uma instituição sobre uma idiossincrasia, não se funda o casamento, conforme já foi dito, sobre o 'amor' - ele é fundado sobre o impulso sexual, sobre o impulso de posse (mulher e filho como posse), sobre o impulso de domínio, que organiza duradouramente a menor das formações de domínio, a família, que precisa de filhos e de herdeiros para conservar também fisiologicamente uma medida alcançada de poder, influência e riqueza, para preparar tarefas demoradas, para preparar a solidariedade de instintos entre os séculos. O casamento como instituição já compreende em si a afirmação da maior, da mais duradoura forma de organização: se a própria sociedade como um todo não pode se responsabilizar por si mesma até as mais remotas gerações, o casamento perde qualquer sentido. - O casamento moderno perdeu o seu sentido - logo, ele é abolido."

[Crepúsculo dos Ídolos, p. 111-113, ed. L&PM, trad. Renato Zwick]

"Lady Agnew" - Sargent, 1893

sábado, 5 de março de 2016

A propósito

O embate entre vacas profanas e vacas sagradas está emporcalhando tudo. Com Nietzsche, porémpodemos almejar uma moral que não seja de rebanho:

"Cristão e anarquista. – Quando o anarquista, na condição de porta-voz das camadas declinantes da sociedade, exige "direito", "justiça" e "direitos iguais" com uma bela indignação, apenas se encontra sob a pressão de sua incultura, que não consegue compreender por que realmente ele sofre – do que é pobre, de vida... Ele é dominado por um impulso causal: alguém deve ser culpado por ele estar mal... Só a "bela indignação" já lhe faz bem, vociferar é um prazer para todos os pobres-diabos – isso dá uma pequena embriaguez de poder. Já basta a queixa, o queixar-se, para dar à vida um encanto pelo qual se suporta vivê-la: há uma dose sutil de vingança em toda queixa; a pessoa censura aqueles que são diferentes, como se isso fosse uma injustiça, um privilégio ilícito, por uma situação ruim, às vezes até por sua ruindade. "Se sou canaille, também deverias sê-lo": é com base nessa lógica que se faz revolução. – O queixar-se não vale nada em caso algum: ele provém da fraqueza. Atribuir sua situação ruim a outros ou a si mesmo – a primeira atitude é própria do socialista, a última, do cristão, por exemplo – não faz qualquer verdadeira diferença. O que há em comum, digamos o que há de indigno nisso, é que alguém deva ser culpado por sofrermos – em resumo, que o sofredor prescreva para seu sofrimento o mel da vingança. Os objetos dessa necessidade de vingança, enquanto uma necessidade de prazer, são motivos de ocasião: o sofredor encontra motivos para arrefecer sua pequena vingança em toda parte – se for cristão, repito, ele os encontrará em si... O cristão e o anarquista – ambos são décadents. – Mas também quando o cristão condena, calunia e emporcalha o mundo, ele o faz a partir do mesmo instinto que o trabalhador socialista condena, calunia e emporcalha a sociedade: mesmo o "Juízo Final" ainda é o doce consolo da vingança – a revolução, tal como o trabalhador socialista também a espera, só que imaginada para um futuro mais distante... O próprio "além" – para que um além, se ele não fosse um meio de emporcalhar o aquém?..." 


[Crepúsculo dos Ídolos, p. 102-103, ed. L&PM, trad. Renato Zwick]



foto de Hannah Starkey