sábado, 5 de março de 2016

A propósito

O embate entre vacas profanas e vacas sagradas está emporcalhando tudo. Com Nietzsche, porémpodemos almejar uma moral que não seja de rebanho:

"Cristão e anarquista. – Quando o anarquista, na condição de porta-voz das camadas declinantes da sociedade, exige "direito", "justiça" e "direitos iguais" com uma bela indignação, apenas se encontra sob a pressão de sua incultura, que não consegue compreender por que realmente ele sofre – do que é pobre, de vida... Ele é dominado por um impulso causal: alguém deve ser culpado por ele estar mal... Só a "bela indignação" já lhe faz bem, vociferar é um prazer para todos os pobres-diabos – isso dá uma pequena embriaguez de poder. Já basta a queixa, o queixar-se, para dar à vida um encanto pelo qual se suporta vivê-la: há uma dose sutil de vingança em toda queixa; a pessoa censura aqueles que são diferentes, como se isso fosse uma injustiça, um privilégio ilícito, por uma situação ruim, às vezes até por sua ruindade. "Se sou canaille, também deverias sê-lo": é com base nessa lógica que se faz revolução. – O queixar-se não vale nada em caso algum: ele provém da fraqueza. Atribuir sua situação ruim a outros ou a si mesmo – a primeira atitude é própria do socialista, a última, do cristão, por exemplo – não faz qualquer verdadeira diferença. O que há em comum, digamos o que há de indigno nisso, é que alguém deva ser culpado por sofrermos – em resumo, que o sofredor prescreva para seu sofrimento o mel da vingança. Os objetos dessa necessidade de vingança, enquanto uma necessidade de prazer, são motivos de ocasião: o sofredor encontra motivos para arrefecer sua pequena vingança em toda parte – se for cristão, repito, ele os encontrará em si... O cristão e o anarquista – ambos são décadents. – Mas também quando o cristão condena, calunia e emporcalha o mundo, ele o faz a partir do mesmo instinto que o trabalhador socialista condena, calunia e emporcalha a sociedade: mesmo o "Juízo Final" ainda é o doce consolo da vingança – a revolução, tal como o trabalhador socialista também a espera, só que imaginada para um futuro mais distante... O próprio "além" – para que um além, se ele não fosse um meio de emporcalhar o aquém?..." 


[Crepúsculo dos Ídolos, p. 102-103, ed. L&PM, trad. Renato Zwick]



foto de Hannah Starkey

Nenhum comentário:

Postar um comentário