DE VOLTA AO AGORA
Porque hoje é sábado, Camila está no meu carro, com as
pernas compridonas esticadas sobre o painel, onde se vê o sinal de FODA-SE
ligado, piscando ansiosamente. Não sei se por causa desse veranico de maio, se
por causa da potência do motor, ou simplesmente porque hoje é sábado, ela abre
as pernas, cada vez mais, desnudas sob o vestido curto, num convite cheio de
promessas de verão, de verões sem fim – convite que não me cabe aceitar no
momento, faz parte do jogo esse esticar a ação para um ponto futuro, que é
exatamente o que ela faz agora com suas pernas estendidas até o para-brisa.
- Isso não é uma
manhã, é uma pequena glória oferecida aos homens – ela diz, com aquele tom de
quem recita uma frase entre aspas. Seus tornozelos frescos parecem caroços de
fruta madura sobre o painel. Este é um daqueles momentos raros em que capto a
plena existência assombrosa da liberdade; por isso mesmo, não digo nada. As unhas
do pé pintadas de azul anil. Amy baixinho no rádio. Trepidação. O acelerador
vibrando sob meu pé. Faço um inacreditável esforço para não me perder por rotas
que não conheço. Me concentro em manter o controle sobre o carro.
Talvez eu estivesse amando-a ali, enquanto voávamos a mais
de 100 através do ar aquecido de maio. Amando a vida, amando tudo o que é vivo.
Perfeito demais.
- Eu não acredito nisso! – diz Clarissa metendo a cabeça
entre os bancos da frente e esfregando os olhos sonolentos. Todo esse tempo sem
olhar pelo retrovisor, já tinha me esquecido dela ali no banco de trás. – Por
que vocês não me acordaram antes? – ela quer saber.
- Tu parecia estar sonhando, profundamente – digo. – Sonho
bom?
- Vai, conta pra gente as novidades do mundo dos sonhos, o
que anda acontecendo por lá? – pergunta Camila, ainda com as pernas sobre o
painel, mas não tão abertas.
- Escuta, vocês tão me escondendo alguma coisa, hein? – Clarissa
tem um tom ríspido.
- Quem tá escondendo alguma coisa aqui é tu – responde Camila
–, por que não conta com o que sonhou?
- Olha, eu sei ver na cara de vocês quando tão aprontando
alguma. Qual é, hein? QUAL É?!! – Clarissa grita. – Pra onde a gente tá indo?
- A gente tá indo até onde dá pra chegar – digo. – Já
reparou que beleza de manhã?
- Onde a gente tá? – ela olha para todos os lados, confusa. –
Olha, não era isso que a gente tinha combinado ontem à noite. Eu quero entender
o que tá acontecendo aqui!
Isso ia acabar acontecendo mesmo, mais cedo ou mais tarde. Não
adianta procurar, Clarissa, o futuro sumiu da nossa paisagem. Já chegamos ao
nosso destino. Há um bom tempo esperávamos por isso, em segredo, sem o
confessar. Troco um olhar com Camila. Um olhar – suspenso no espaço entre os
nossos bancos –, um olhar apenas e ela já sabe o que tem que fazer. Em seguida
olho pelo retrovisor, encaro Clarissa. Lamento que a liberdade vá tão longe,
tão longe a ponto de chegar onde não devia, tão longe a ponto de chegarmos a
perdê-la.
Camila aumenta o volume do rádio, com o sorriso mais
perturbador que um homem já viu, um sorriso antiquíssimo que deve ter sido a
causa de toda a ventura de Adão.
We only said goodbye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to black
E então coloca no último volume, ensurdecedor, um inferno sensacional explodindo em nossas cabeças, e começamos a gritar, a gritar com nossas gargantas violentas, berrando desvairados, furor nos pulmões inchados de tanto amor, de tanto desejo, de tanto prazer, somos cães cantando, num potente uivo de liberdade, FODA-SE, FODA-SE, FODA-SE, piscando cada vez mais rápido no painel – viver é a única felicidade possível, deve estar tentando dizer Camila agora, recitando mais uma das frases que decora, mas não se ouve nada além da nossa gritaria desesperada. Parece que tudo vai arrebentar.
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to black
E então coloca no último volume, ensurdecedor, um inferno sensacional explodindo em nossas cabeças, e começamos a gritar, a gritar com nossas gargantas violentas, berrando desvairados, furor nos pulmões inchados de tanto amor, de tanto desejo, de tanto prazer, somos cães cantando, num potente uivo de liberdade, FODA-SE, FODA-SE, FODA-SE, piscando cada vez mais rápido no painel – viver é a única felicidade possível, deve estar tentando dizer Camila agora, recitando mais uma das frases que decora, mas não se ouve nada além da nossa gritaria desesperada. Parece que tudo vai arrebentar.
A trepidação aumenta. Camila tem os cabelos voando livres em
todas as direções; como numa câmera lenta, é possível distinguir cada fio negro
um do outro, as coisas ficam todas belas e trágicas, revelam-se detalhes que
nunca eram visíveis. Que tremenda boa ação teriam feito os homens aos deuses
para serem presenteados com esse sopro doce como um beijo, que nos envolve
nesse amanhecer de sábado? Avançamos, num ritmo distorcido, perdidos no tempo,
numa câmera lenta muito acelerada.
Daqui a pouco os
vidros vão estourar. O carro vai desaparecer numa nuvem de fumaça. A liberdade
vai se reduzir a um pó cintilante. Nós seremos ausências eufóricas, ecoando nas
estradas. Amy estará conosco. O sábado vai terminar. Perfeito demais.
Um deleite! Mas confesso que desejei a narrativa se enveredando por entre as pernas de Camila.
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