quinta-feira, 31 de maio de 2012

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ÉDIPO 2.1


Me olhou muito profundamente nos olhos, como se por fim tivesse compreendido toda a verdade, e me deu ainda um conselho:

"Carpe diem".

Foi a última coisa que me disse meu pai.




(Carpe diem, o senhor vivia me dizendo. Mas não, pai, o dia não está mais dividido em 24 horas, e sim em 86.400 segundos. O senhor quer que eu aproveite o quê, exatamente? São 86.400 minúsculos e imprestáveis cacos, 86.400 fragmentos do que foi o século XX.  O que é demais nunca é o bastante, isso está mais que provado. Baseado não tem mais graça. Cocaína não deixa mais doidão não, pelo contrário, serve pra acalmar um pouco.)

Fui intimado a comparecer na delegacia para prestar depoimento. As circunstâncias da morte não estavam muito claras e aparentemente eles esperavam que eu pudesse elucidar os pontos nebulosos.

(Pai, o senhor precisava ver isto: descobri os escombros da reputação da nossa família; vasculhei o mapa genético do nosso nome, do nosso sangue: está em ruínas o senso de trabalho que moveu nossa linhagem até aqui, o sentido de civilização, progresso, futuro e o projeto pessoal ligado ao avanço da sociedade. Oitenta e seis mil e quatrocentos segundos, isso é muito ou muito pouco? Pai, qual era o maior número com que o teu pai convivia? Os 10.000 quilômetros entre o Brasil e a Alemanha que o pai dele atravessou? Os 6 milhões de mortos nos campos de concentração? (hábeis negociantes, não terão superfaturado esse número?) É duro confessar isso, mas eu morro 86.400 vezes por dia. E eu espero que o senhor não me leve a mal, mas eu acho a mortandade de animais silvestres nas estradas mais triste que o holocausto judeu (não me importo com a mortandade de peixes nos nossos rios podres; peixe dá em massa, morrem milhões mas têm muitos outros milhões vivos). Tem muita gente nesse mundo, pai, gente demais, não dá pra todo mundo sair carpe diem por aí.)

Enquanto o escrivão tomava meu depoimento, eu observava através do vidro divisório uma televisão ligada na sala ao fundo. Sem som, a imagem da Challenger decolando e explodindo parecia ainda mais absurda. Ao lado, um homem calvo  gesticulava ao telefone, num aparente jogo de mímica sem sentido. Depois, Chernobyl em colapso, os guardas passando detectores de radiação nas pessoas, nos cães, nas malas. Parecia que, por algum motivo, a TV estava fazendo uma retrospectiva do ano em que nasci. Tirei os olhos da televisão para responder à última pergunta: não, eu não tinha conhecimento de nenhum motivo para que matassem meu pai.

(Mas eu não quero parecer pessimista, não. Vamos olhar pra frente: daqui a 86.400 anos nada disso vai ter o menor sentido – tudo isso aqui vai parecer tão absurdo e anacrônico quanto o teu carpe diem de hoje, pai. Mas até lá, o que resta a mim? O que foi que herdei do esforço de todos os nossos antepassados? Oitenta e seis mil e quatrocentos segundos por dia para aproveitar a riqueza acumulada, as infinitas potencialidades da possibilidade de comprar comida, serviços e prazer. Comida, serviços e prazer. Comida, serviços e prazer. Comida, serviços e prazer, oitenta e seis mil e quatrocentas vezes por dia. Trocaria tudo isso pela convicção de que pelo menos sou digno de viver, de estar vivo de verdade. Eles vivem bem sem mim, pai, a sociedade não precisa de mim, eles vão arranjar meios de me sobrepujar ou mesmo de me eliminar.)

Senti que estavam prestes a abandonar de vez a hipótese de homicídio e colocar tudo na conta da doença. Imaginei o corpo do meu pai estendido no necrotério e lembrei daquela música que me criei ouvindo. Por que a violência é tão fascinante? E nossas vidas tão normais? Eu menti quando eles me perguntaram quais haviam sido as suas últimas palavras: disse que ele havia pedido para que eu cuidasse da minha mãe.

(“Aproveite cada segundo” diz o chavão da sabedoria transmitido pelo comercial da televisão. Oitenta e seis mil e quatrocentos orgasmos por dia, aposto que o senhor não chegou a tanto numa vida inteira! É um jogo, pai, é um jogo e a regra é: “intensificar os desejos até o insuportável tornando ao mesmo tempo sua realização cada vez mais inacessível” (conforme as palavras do novo profeta). Ninguém mais é inocente, já nascemos todos culpados, corrompidos – e que fique claro, pai, isso não tem nada a ver com o pecado original, com a expulsão do paraíso ou qualquer dessas mistificações alegóricas ultrapassadas. Meu avô não dizia que a gente colhe o que planta? Será que o velho não tinha sequer noção da confusão que reinaria sobre as gerações seguintes? Que sementes são essas que tenho nas mãos?, eu gostaria de perguntar ao meu avô. Quem pode saber que sementes estão sendo jogadas? Primeiro acabou a certeza do meu avô, e agora acabou também o teu otimismo, não é, pai? Eu fico pensando: que desejos insuportáveis vocês tiveram em suas vidas, se é que os tiveram? Provavelmente não, provavelmente meu avô quase não tinha desejos, provavelmente tu, meu pai, teve desejos que eram perfeitamente suportáveis; provavelmente ambos realizaram seus desejos. Mas não é mais assim. Agora somos todos criminosos, inclusive as vítimas. É o fim da inocência. Não surpreende que estejamos todos atrás de grades; é muito justo, pensando bem.)

Entendo-o perfeitamente. Acho que eu faria o mesmo na sua situação. De que vale uma vida mortificada não pelo medo do fim, mas pelo medo de continuar vivendo? Acordar com a permanente angústia de lutar contra um tumor invisível, até que findem os dias e as noites, cada vez mais pálidos? Eu o entendo, sim. Mas também gostaria que alguém me entendesse. Não é fácil para um filho realizar um desejo tão decisivo e irreversível quanto esse. Eu tinha de fazer aquilo, não por dever moral, mas simplesmente porque há muito tempo meu pai não manifestava qualquer desejo, e quando este surgiu, penoso e amadurecido, me pareceu natural que fosse realizado. Pensando bem, sempre existem em nós mesmos coisas que devem morrer, coisas que devemos matar.

(Pai, escuta essa: ontem quando eu voltava do trabalho, passando ali nos fundos daquele colégio, vi três meninas no pátio, não podiam ter mais de doze anos de idade; uma delas, a que usava minissaia e meia-arrastão, subiu naquela mesa de concreto, ficou ali de pé, enquanto as outras ficaram sentadas em volta dela, espiando por baixo da saia e estimulando-a com gritinhos; elas me viram e começaram a cantar repetidos refrãos em coro, gritando, desvairadas, me chamando de gostoso, a de minissaia rebolando. Carpe diem, pai, essas meninas já sabem como fazer, carpe diem. E ainda dizem por aí que a nossa geração é apática? Só porque desistimos de ter filhos? Porque desistimos de envelhecer? Juventude&beleza iLtda. Carpe diem, oitenta e seis mil e quatrocentas vezes por dia. Ainda não desistimos do sexo, pai; ainda não, mas é uma questão de tempo, de cansaço, de desistir do jogo, entende? Tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha, oitenta e seis mil e quatrocentas vezes repete-se o refrão. E não me venha com Freud, pai, ele era apenas um intelectual com medo de dizer (assim, com todas as letras) que o prazer sexual é o único objetivo real da existência humana. O mesmo vale para Lennon, para Gandhi, até para Einstein; todos vocês viviam num dia de 24 horas (e todos vocês tinham medo de dizer o que todo mundo sabe). Nenhum de vocês teve de contar até 86.400 para não agir precipitadamente. Nenhum de vocês viu aquela menina de minissaia. Vocês não conhecem o novo refrão. Tô atolado, pai, atolado num mar de comida, serviços e prazer. Assumo a herança. Recuso a culpa. Desconsidero o holocausto. Se querem me eliminar, terão de me pegar. Não vai ser assim tão fácil. Estou vivo, de verdade. Carpe diem pro senhor também.)

Cego por lágrimas, forcei um derradeiro olhar para a mancha escura e liquefeita em que havia se transformado o caixão, antes que a terra por fim o cobrisse. “Seja feita a tua vontade”, pensei comigo, enquanto tomava a decisão de nunca contar a verdade a ninguém.


Índia, 2012: festividade hindu - by Kevin Frayer

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