[Publicado originalmente em 23/09/2025 em blog desativado]
“La letteratura e gli dèi”, reunião de oito conferências ministradas pelo autor em 2000, trad. Jônatas Batista Neto, ed. Companhia das Letras, 2004.
“Acreditávamos viver num mundo sem névoa e desencantado, avaliável e verificável. Ao contrário, encontramo-nos num mundo onde tudo voltou a ser ‘fábula’. Como poderemos nos orientar? A que fábula vamos nos abandonar se já sabemos que a fábula vizinha tem condições de submergi-la? Essa é a paralisia, a peculiar incerteza dos tempos novos, uma paralisia que todos, desde aquele momento, experimentamos. Nietzsche apresenta-a como o ordálio pelo qual agora temos de passar: a condenação – ou a escolha – a atravessar um mundo totalmente espectral, onde sem dúvida é verdade que ‘tantos novos deuses são ainda possíveis‘ e o passo se prepara para uma nova dança, para ‘uma eterna fuga e busca de muitos deuses, um feliz contradizer-se, voltar a entender, voltar a pertencer a muitas entidades‘. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso é envolvido por uma sutil e incontrolável irrisão, tornando a situação passageira, fugidia, em outras palavras: uma paródia.” (pág. 55-56)
“Procedimentos como o que acabamos de descrever pressupõem que toda criação – e, em particular, qualquer forma literária, de qualquer nível – seja envolvida no manto tóxico da paródia. Nada é mais o que afirma ser. Tudo já é uma citação no momento em que aparece. Esse evento enigmático e perturbador, do qual poucos, até então, pareciam dar-se conta, pode ser visto como uma manifestação do fato de que o mundo inteiro, como Nietzsche logo iria anunciar, estava voltando a transformar-se em fábula. Mas agora a fábula é um turbilhão indiferente, onde os simulacros se revezam como uma poeira igualitária. ‘Lá onde não há deuses, reinam os fantasmas‘, vaticinara Novalis. E era possível acrescentar: deuses e fantasmas se alternarão no palco, com direitos idênticos. Não há mais um poderio teológico capaz de governá-los e de ordená-los. Quem se arriscará, então, a entrar em contato com eles, a coordená-los? Uma potência ulterior, até então mantida em perene minoria, e usada para o serviço do corpo social, mas que, nesse momento, ameaça desancorar-se de tudo e navegar, solitária e soberana, como uma nave que acolhe todos os simulacros e vaga, no oceano da mente, pelo puro prazer do jogo e do gesto: a literatura. Que, nessa sua mutação, poderá, também, ser definida como literatura absoluta.” (pág. 62)
1) Troque-se ‘fábula’ por ‘narrativa’ e estaremos diante de uma definição ainda mais reconhecível nos dias de hoje. Penso que aí está expressada boa parte da angústia que movia um David Foster Wallace, pra citar um exemplo de uma geração de autores muito conscientes de todo o pós-tudo, que levou à paródia como estratégia de sobrevivência num mundo totalmente espectral. Penso na IA como consumação da paródia, como paródia infinita, como a espécie mais insidiosa de fantasma – nos restando, quem sabe?, a improvável esperança de que “o puro prazer do jogo e do gesto” vai tornar a literatura ainda mais agudamente absoluta.
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“Há um sentimento muito forte e muito antigo que raramente é identificado e mencionado: a angústia decorrente da ausência de ídolos. Se o olhar não tem uma imagem sobre a qual repousar, se lhe falta uma mediação entre o fantasma mental e aquilo que tem existência concreta, um desânimo sutil nos invade. É essa a atmosfera dominante do primeiro sonho de que temos notícia, e que foi registrado por uma mulher, Adduduri, funcionária do palácio de Mari, na Mesopotâmia, numa carta cunhada em tabuinhas de argila, há mais de 3 mil anos: ‘No meu sonho, eu entrara no templo da deusa Bêlit-ekallim mas a estátua de Bêlit-ekallim não se encontrava lá! E nem as estátuas das outras divindades que, normalmente, a circundam. Diante de tal espetáculo, pus-me a chorar por longo tempo’. O primeiro de todos os sonhos trata de um templo vazio, como o aposento de Mallarmé. Talvez as estátuas tivessem sofrido uma deportação, como acontecia, às vezes, naqueles tempos, com certas populações. A ausência vem antes da presença: esse é o regime que governa a existência das imagens. E isso permite compreender por que a literatura, rapidamente, reencontrou e restaurou os ídolos fugitivos: ela é a guardiã de todos os lugares frequentados por fantasmas.” (pág. 86)
2) A metáfora se aplica a toda a literatura de ficção, por definição, mas eventualmente também o sentido denotativo, do qual o espectro do Rei Hamlet talvez seja o grande patrono. No meio do caminho entre a metáfora e o sentido literal, entre o aposento vazio e o encontro com a imagem, entre a solidão e o reconhecimento, guardo comigo três adoradas imagens de ausência-presença, das mais queridas que a guardiã dos lugares frequentados por fantasmas já me proporcionou:
a) Uma parada imprevista no apartamento ora desocupado da irmã faz Buddy Glass se deparar com um recado, deixado escrito no espelho do banheiro, ao irmão Seymour, que se ausentou do próprio casamento. (Pra cima com a viga, moçada! ou Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira ou Erguei bem alto a viga, carpinteiros, de J.D. Salinger). (Aliás, Seymour Glass talvez seja o grande ídolo/fantasma da literatura do século XX, cuja mitologia familiar é alimentada por cartas, diários, telefonemas, entre outras formas de assombração – já escrevi um pouco sobre isso aqui).
b) Dia após dia, Faustine contempla o pôr-do-sol e se mantém totalmente indiferente às tentativas de aproximação do narrador, até que ele descubra como eternizar-se na fantasmagoria da realidade. (A invenção de Morel, de A. Bioy Casares)
c) Um sujeito introvertido vaga pelos numerosos aposentos de um palacete durante um baile, em busca de alguma privacidade, até que, num quarto totalmente às escuras, de repente recebe um beijo de uma dama oculta que decerto aguardava outro, e que fugirá, incógnita, devolvendo-o a uma renovada solidão. (O Beijo, conto de Tchékhov)
A mensagem escrita no espelho. O encanto por algo que não passa de engenhosa ilusão. O vestígio de calor humano que dura só um instante e permanece para sempre sem explicação. São três imagens riquíssimas do que é a literatura de ficção.
E são três exemplos de como o “mundo totalmente espectral” (citação 1) da realidade contemporânea poderá encontrar caminhos insuspeitos naquele outro mundo que sempre se assumiu como espectral, ilusório, metafórico – vazio e pleno.
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“Como reconhecer, de outra forma, a poesia – e o seu desvio em relação ao que já existe? Algo ocorre, algo que Coomaraswamy definiu, um dia, como ‘o abalo estético’. A sua natureza não muda – quer se trate do aparecimento de um deus ou de uma sequência de palavras. É a isso que a poesia induz: ela faz ver o que, de outra forma, não se veria, por meio daquilo que, antes, jamais se ouviu.
“Mas o que tinham em mente esses escritores que mencionei, quando diziam, quando pensavam a respeito de algo: isso é Literatura? Alérgicos a qualquer pertença, sócios honorários (como Groucho Marx) do clube daqueles que jamais se inscreveriam numa agremiação que os aceitasse como membros, eles aludiam, com essa palavra, à única paisagem na qual sentiam-se vivos: uma espécie de realidade segunda, que se escancara por trás das fissuras daquela onde foram harmonizadas, coletivamente, as convenções que fazem avançar a máquina do mundo. Que tais fissuras existam já é um postulado metafísico – e nem todos tinham vontade de estudar textos de filosofia. Mas, de fato, operavam assim, como se a literatura fosse uma espécie de metafísica natural, irreprimível, que se baseia em cadeias não de conceitos mas sim de entidades heteróclitas – fragmentos de imagens, assonâncias, ritmos, gestos, formas de todo gênero. E esta última era, talvez, a palavra decisiva: forma. Repetida por séculos, pelos motivos mais variados e sob as mais diversas espécies, ainda hoje parece ser o fundo por trás de qualquer outro fundo, quando se fala de literatura. Fundo fugidio, além de tudo, e incapaz, por natureza, de traduzir-se em enunciados. De forma, é possível se falar, de modo convincente, apenas por meio de outras formas. Não existe nenhuma linguagem superposta às formas, e que possa explicá-las, bem como torná-las funcionais. Assim como isso não existe, também, com relação ao mito.” (pág. 125)
3) Não costumo dar atenção a polêmicas – a verdade é que, confesso, o nome de Aurora Bernardini não me diz nada, e sequer li os autores que ela criticou, assim como não li a tal entrevista, portanto tampouco sei o contexto -, mas aqui e ali vi reações e provocações repercutindo suas recentes declarações sobre o conceito de literatura, de estilo, de forma e de conteúdo, e este trecho do Calasso conversa com essas questões. Ele assume a perspectiva dos escritores, mas penso que o mesmo se aplica ao leitor – pelo menos ao leitor exigente, atento e dedicado, que, ao ler, está escrevendo junto com o autor, e que não tem nada de melhor a fazer na vida, pois na literatura encontra a “única paisagem na qual sentiam-se vivos: uma espécie de realidade segunda, que se escancara por trás das fissuras daquela onde foram harmonizadas, coletivamente, as convenções que fazem avançar a máquina do mundo”. O que é literatura? Está lá na citação 2: “é a guardiã de todos os lugares frequentados por fantasmas” – e será tanto melhor quanto mais souber fazê-lo.


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