01 dezembro 2025

Notas de leitura – “O ESTRANGEIRO”, de Albert Camus

[Publicado originalmente em 14/10/2025 em blog desativado]

“L’étranger”, publicado originalmente em 1942. Trad. Valerie Rumjanek, ed. Record, ano da edição não identificado. Lido em 2009, relido em 2025.

Valentine Panici

“- Se andarmos devagar – disse ela – arriscamo-nos a uma insolação. Mas se andarmos depressa demais, transpiramos, e, na igreja, apanhamos um resfriado.

“Tinha razão. Não havia saída.” (pág. 22)

1) A fala da enfermeira, que será relembrada pelo protagonista muito depois, num momento existencial crítico, talvez seja a chave do coração do livro, ao dar uma expressão concreta às aporias da existência. Por mais que se busque alguma forma de equilíbrio, este desejo é sempre precário diante da força implacável dos contrastes.

Como bem observou Vargas Llosa no seu comentário sobre o livro (em A verdade das mentiras), O Estrangeiro é ambíguo e se presta a diferentes perspectivas acerca do caráter do seu herói, cabendo a cada leitor construir o seu próprio julgamento; em última análise, desafiando-nos com o dilema: o que é menos pior? Andar devagar ou depressa? A insolação ou o resfriado? Adaptar-se à ficção da sociedade ou manter-se fiel ao seu próprio personagem íntimo? E assim por diante.

cena do filme “Valsa com Bashir”, dirigido por Ari Folman


* * *

“Era o mesmo brilho vermelho. Na areia, o mar ofegava com toda a respiração rápida e sufocada de suas pequenas ondas. Eu caminhava lentamente para os rochedos e sentia a testa inchar, sob o sol. Todo este calor me apertava, opondo-se a meus passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto, trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar sobre o sol e essa embriaguez opaca que ele despejava sobre mim. A cada espada de luz que jorrava da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um caco de vidro, meus maxilares se crispavam. Andei durante muito tempo.

“Via, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, envolto em uma auréola ofuscante pela luz e pela névoa do mar. Pensava na nascente fresca atrás do rochedo. Tinha vontade de reencontrar o murmúrio de sua água, vontade de fugir do sol, do esforço e do choro de mulher, enfim, vontade de reencontrar a sombra e seu repouso. Mas, quando cheguei mais perto, vi que o árabe de Raymond tinha voltado.

“Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo, todo o corpo ao sol. Seu macacão azul fumegava ao calor. Fiquei um pouco surpreso. Para mim, era um caso encerrado, e viera para cá sem pensar nisso. Logo que me viu, ergueu-se um pouco, e meteu a mão no bolso. Eu, naturalmente, agarrei o revólver de Raymond, dentro do paletó. Então, o árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava bastante longe dele, a uns 10 metros de distância. Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas, na maioria das vezes, a sua imagem dançava diante de meus olhos, no ar inflamado. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso, mais estagnado do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, sobre a mesma areia, que se prolongavam até aqui. Havia já duas horas que o dia não progredia, duas horas que lançara âncora num oceano de metal fervilhante. No horizonte, passou um pequeno vapor, distingui sua mancha negra com o canto do olho, pois não deixara de fitar o árabe.

“Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas, atrás de mim, comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. Esperei. A ardência do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe, e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa desta queimadura, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como uma longa lâmina fulgurante que me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos, por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi, então, que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho, ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então, atirei quatro vezes ainda num corpo inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.” (pág. 61-63)

2) Poucas vezes o clímax de uma narrativa foi tão bem situado e explorado. Estamos exatamente na metade do livro, e, talvez, prestes a nos cansarmos da sua prosa seca e econômica – que se justifica pelo temperamento do protagonista. E eis que, neste encerramento da primeira parte do romance, Camus deixa bem evidente que sabe, quando necessário, desenvolver um estilo mais descritivo, envolvente, impressionista, enervantemente poético. O desabrochar dessa torrente estilística vem marcar o ponto de inflexão do drama de Mersault. E se o sol massacrante, onipresente, opressivo, inclemente, parece o índice da presença de um Deus com as mesmas propriedades, ou de um sistema de sentido totalizante e totalitário, a “vontade de reencontrar a sombra e seu repouso” não apenas aponta para o árabe sem nome como a sombra que Mersault carrega consigo, como também traduz o destino irônico de quem enfim encontrará uma sombra permanente na prisão e uma condenação ao repouso na sentença de morte.

É interessante como o segundo parágrafo faz pensar quase numa miragem, uma visão que surge com uma aura de salvação, expressão de uma sede metafísica – para terminar na muito concreta presença de um outro que é hostil e incompreensível, espécie de guardião daquele oásis proibido.

E que achado é esta frase, talvez a mais verdadeira e íntima desse personagem elusivo que é Mersault: “Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”. Proust tem razão: os verdadeiros paraísos são os que perdemos.

Gordon Hunt


* * *

“Ao sair do Palácio da Justiça para entrar no carro, reconheci por um instante o cheiro e a cor da tarde de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei, um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que me ocorria ficar contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já distendido, os últimos pássaros na praça, o grito dos vendedores de sanduíches, o lamento dos bondes nas pronunciadas curvas da cidade e este rumor do céu antes de a noite descer sobre o porto, tudo isto recompunha, para mim, um itinerário de cego, que eu conhecia bem antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que me aguardava era sempre um sono leve e sem sonhos. E, no entanto, alguma coisa mudara, pois, com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela que reencontrei. Como se os caminhos familiares traçados nos céus de verão pudessem conduzir tanto às prisões, como aos sonos inocentes.” (pág. 99)

3) Por um instante, a consciência do que seja a liberdade. Mais cedo há outro trecho magnífico, quando Mersault descobre que o melhor que pode fazer para passar o tempo na prisão é reconstituir com a memória cada palmo do quarto da sua casa, com suas variadas formas, cores, texturas – um formidável lembrete do quão facilmente nos esquecemos do valor de termos tudo isso ao dispor dos nossos olhos, mãos, corpo, sentidos, consciência, da nossa liberdade, enfim. E, curioso, até mesmo neste trecho longe da praia e do sol ofuscante, o motivo do olho/cegueira se faz presente (“um itinerário de cego").

* * *

Encerro com uma sincronicidade ocorrida no último domingo: interrompi a leitura de O Estrangeiro para dar uma caminhada no Parque Marinha, onde vi (e ouvi) um vendedor ambulante de sorvete com a peculiar corneta, e pensei que era a primeira vez em muitos meses que via um sorveteiro, sinal do verão que se aproxima. Voltei pra casa, retomei a leitura, e me deparei com o seguinte na página 106: “lembro-me apenas de que (…) eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes."

capa da edição


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