Poucos leram o uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), típico caso de escritor cujo tamanho ultrapassa em muito a divulgação que recebeu. Curioso é que, ao que parece, os poucos que o conhecem são um tanto afeiçoados à sua obra. Onetti se torna íntimo de nós, seus leitores, fazendo vibrar a superfície da nossa placidez com ondas de obsessão sem centro definido. A atmosfera onettiana envolve-nos quase ao ponto de sufocamento; bem, e que leitor obstinado não gostaria de ter a garganta afogada em palavras e silêncios, enquanto procura (geralmente em vão) algo à sua volta que lhe devolva a ilusória segurança das certezas?
A literatura de Onetti é uma provocação, é um arrebatamento, uma desilusão, um desengano. Porque nunca se pisa em terreno totalmente firme quando se anda junto a Onetti. Zonas de desconforto acolhem seus personagens, e o leitor nunca está convicto de que existam soluções que sejam mais interessantes, mais verdadeiras e mais intensas do que os próprios problemas.
Lendo seus primeiros contos, das décadas de 1930 e 1940, temos a primeira e, talvez, mais fundamental característica da obra de Onetti: a estetização da vida – explico: a realidade vivida com o sabor da ficção, o dia-a-dia vivenciado como criação dos desejos. Claro, esta é uma característica definidora da própria literatura, da arte em geral, mas em Onetti tal realização ganha vida nos próprios personagens.
Em “Avenida de Mayo – Diagonal – Avenida de Mayo”, o personagem recolhe impressões enquanto caminha pela famosa avenida, reelaborando-as em divagações-delírios estéticos. Sons, letreiros, movimentos, cores e anúncios ganham histórias que nascem e morrem na cabeça do transeunte. O personagem dá asas ao seu desejo de tornar interessante a banalidade que o cerca. Da mesma essência é o conto “O possível Baldi”, em que o personagem parte de uma situação real e concreta de felicidade, que é contraposta ao estímulo de uma desconhecida na rua; então ele passa a mentir para não ver arruinada a felicidade que julgava tão concreta – a mentira como artifício de fruição estética da própria vida; mil aventuras ganham vida na boca do homem medíocre. E assim a felicidade real se mostra insuficiente diante do prazer das aventuras que nunca aconteceram. Não é diferente a característica essencial de “Um sonho realizado”, em que um sonho banal precisa ser reproduzido, encenado, montado para dar um sentido à vida.
Temos até aqui dois caracteres recorrentes nos contos de Onetti: a mentira e a aventura; mais exatamente, a aventura como mentira e a mentira como aventura , o que não é nada mais que a matéria prima do que chamei de estetização da vida. Outros elementos vão se agregar.
A recepção a que alude o título de “Bem-vindo, Bob” é ao mundo adulto, dos “homens feitos, quer dizer, desfeitos”, com suas rotinas estabelecidas, regulares, previsíveis, mesquinhas, com as ambições estéticas inevitavelmente mortas. Volta o tema da maturidade em “Regresso ao Sul”, conto que traça a geografia urbana da paixão de um homem (des)feito. Geográfica é também a caracterização de “Esbjerg, na costa”, sendo que aqui aparecem nitidamente e de forma explícita outras cores que as tintas de Onetti já sugeriam: a melancolia (infância perdida, distância da terra natal, solidão) e a impossibilidade de compartilhá-la.
Nessa perspectiva, o conto-chave é “O álbum”, reunindo todos os aspectos observados até aqui. Os personagens de Onetti descobrem que têm um passado, dão-se conta disso num lampejo qualquer, em um momento banal – vem daí grande parte da nostalgia das suas histórias. Do mesmo modo, os personagens descobrem que não têm futuro, vislumbram a mera continuidade do presente, um vir-a-ser desprovido de potencialidades, na medida em que o presente encerra a impotência de transformação da vida – vem daí o caráter melancólico da atmosfera onettiana. Esta realidade nostálgica e melancólica só é superada através das experiências de estetização da vida. Diz a personagem:
- Não importa que esteja chovendo, mesmo que chova assim durante cem anos isto não é chuva. Água que cai, sim; chuva, não. [...] É apenas água que cai e as pessoas têm de dar um nome a ela. Assim, nessa aldeola ou cidade chamam de chuva a água que cai; mas é mentira.
[...] Explicou-me que só é chuva a água que cai sem utilidade nem sentido.
Esta transfiguração lírica de um fenômeno físico reflete a ânsia da literatura de Onetti: transfigurar a insuficiência da vida no prazer de viver sem utilidade nem sentido. “Já não me interessava ler ou sonhar” diz o personagem que ouvia as histórias narradas por uma misteriosa mulher, porque a fantasia havia se incorporado ao personagem, o seu dia-a-dia tornara-se fantástico porque vivenciava as venturas habitadas nas mentiras, com suas “peripécias e geografias”. A desilusão ocorre quando elas, as mentiras, tornam-se verdades, através de fotografias. Então, paradoxalmente, desacredita-se; a imagem (fotografia, reprodução) desacredita a imaginação (mentira, desejo) – talvez da mesma forma como a palavra desacredita a ideia, o sentido desacredita a palavra, a vida desacredita o sentido, a morte desacredita a vida, o tempo desacredita a morte, e de como a imaginação, a fantasia e a arte desacreditam o tempo.
Em Onetti, tornar real é desacreditar, e as mentiras é que são verdadeiras – algo assim como Pirandello com os seus seis personagens à procura de um autor. Mas o tempo, desacreditado ou não, passa e com ele passam os homens. Na década de 1950 Onetti torna mais complexas as suas palavras mentirosas. “História do cavaleiro da rosa e da virgem grávida que veio de Liliput” é um conto cansativo, mas que descortina a geografia de Santa María, cidade fictícia que, desde então, foi o cenário preferido das suas histórias. Que não se pense em Santa María como o lugar idílico, nem mesmo como depositária da ternura nostálgica incondicional do autor. O que o conto revela é também a geografia da mesquinhez dos seus habitantes progressistas (aliás, qualquer semelhança com nossas comunas aqui do extremo sul brasileiro não deverá ser coincidência tão fortuita). Novamente, mas por outro viés, no núcleo da matéria onettiana está a mentira, aproximando os extremos da sua linha: numa ponta a estetização da vida, na outra o mesquinho cotidiano de uma pequena cidade. Está formado o elo de ambivalência da mentira dos homens.
Ficam mais perversos os títulos. “O inferno tão temido” traz de volta as imagens fotográficas como elemento perturbador. Mas neste conto são os pecados – a luxúria, a vingança, o orgulho, a inveja – que explicam o “autêntico assombro da liberdade” e a consequente ameaça do inferno a que alude o título. O personagem sucumbe, paralisado (nostálgico e melancólico) ao assombro da liberdade, parecendo incapaz de superá-la pela transfiguração – ou mesmo de resignar-se como o velho Lanza.
Em 1960 Onetti executa o seu pulo-do-gato com “A cara da desgraça”, que dedicou à sua última esposa. É um conto de elegância e destreza felinas, imprime figuras de promessas, sonhos, desejos, memórias, movimentos, cores, formas, texturas. O verão é quase personagem. Onetti chega ao seu ápice nesta história em que cada um dos detalhes enigmáticos cumpre uma função na narrativa, reveladas apenas ao final. O personagem vive entre um passado dilacerado e uma promessa de futuro, mas ambos são equívocos, como descobrirá o leitor. A moça da bicicleta é a musa da literatura de Onetti, pois carrega consigo um absurdo, um alheamento, um deslocamento, uma estranheza e uma melancolia que são muito caros à atmosfera dos seus contos. E mais não deve ser dito, para não frustrar o segredo dos olhos daquela moça aos leitores que ainda não tiveram o privilégio de conhecê-la.
Minto, ainda há uma observação a ser feita sobre algo que parece negligenciado nas abordagens sobre a obra de Onetti. Assim como em “O inferno tão temido”, cumpre função a tradição cristã neste “A cara da desgraça” – (aliás, não se poderia dizer que ela cumpre função ao longo de toda a obra, ainda que pela ausência?). Em determinado momento nos diz o personagem não saber rezar. Nos últimos instantes da narrativa, essa indicação despretensiosa ganha inesperada relevância, imiscuindo-se na resolução do mistério que percorre a história. Uma consulta ao site oficial revela quais são os autores preferidos de Onetti:
¿Sus autores preferidos? – La Biblia, Faulkner, Proust, Céline, Dostojewski, Cervantes, Hemingway.
A Bíblia foi a sua primeira resposta. Fica em aberto a possibilidade de uma análise aprofundada sobre a importância da tradição cristã e das narrativas bíblicas na obra do escritor uruguaio.
Em “Jacob e o outro” a narrativa é mais arrojada, mais visual e agressiva, e com atmosfera diversa, menos nostálgica e melancólica; parece mais próxima à literatura norte-americana. Mas o resultado julgo inferior, pois não há o encantamento estranho e sedutor – responsável por aquele sentimento de intimidade a que me referi no início deste texto.
A partir da década de 1960 os contos se tornam cada vez mais opacos, exigindo mais disposição por parte do leitor. Ainda há o brilho sedutor de “Tão triste como ela”, e o caráter maldito do impulsivo “Bem no trinta e um”, quase incompreensível.
Onetti deixou conselhos, curtos e incisivos, para escritores principiantes, em forma de “decálogo mais um” (ares bíblicos rondam novamente?). Diz o décimo: “Mentir sempre”.
Só mentiras fazem sentido.
Utilizei a edição da editora Record/Altaya, intitulada “Tão triste como ela e outros contos”, de 1976. Existe uma edição dos contos completos, Companhia das Letras, “47 contos de Juan Carlos Onetti”.
Lucas Petry Bender