27 novembro 2025

"Carol" e o que pode um par de pernas

 [Publicado originalmente em 03/03/2025 em blog desativado]

Cena de Carol - na verdade, um rápido plano de transição de cenas.

Revi dias atrás o formidável Carol (2015, dir. Todd Haynes), pela primeira vez na telona (não adianta, a experiência da sala de cinema é incomparável), sessão lotadíssima no Capitólio para ver essa que é uma das joias da última década cinematográfica. O que mais me encanta é que há uma certa aura de sonho revestindo cada plano do filme, criando um mundo em que o sentido está inteiro na beleza - reconhecê-la, admirá-la, cultivá-la, conquistá-la, render-se à beleza, em todos os seus aspectos.

Nada mais apropriado do que o tratamento da imagem, da fotografia, das cores, dos enquadramentos, das superfícies, do apuro visual e sonoro, enfim, ser um dos mais belos que temos visto nos últimos tempos, embora toda essa calculada estética tenha também os seus deslocamentos e desconfortos (seja no plano visual, seja no tema abordado). Não menos bela e instigante é a trilha sonora original, de Carter Burwell. Tudo isso culmina no desenvolvimento do olhar fotográfico de Therese (Rooney Mara), por um lado, mas sobretudo na ênfase que Carol (Cate Blanchett) dá à palavra "feia" (ugly) quando do seu sensível apelo diante do marido e dos advogados; cito de memória: "se isso for levado ao tribunal, a coisa vai ficar feia", e assim acaba a cena - como se dissesse que, se isso for levado à realidade, o encanto de sonho da beleza será aniquilado pela feiura representada pelas disputas de poder, pelos preconceitos sociais, pela insensibilidade torpe. A palavra que encerra o clímax do filme faz esse brutal contraste com a beleza do gesto e do discurso da personagem, assim como expõe o outro lado da moeda do sonho de beleza.

Mas o que eu queria mesmo dizer é que um rápido plano do filme (foto acima) me remeteu ao célebre Automat (1927), de Edward Hopper (abaixo). Já se tornou batido identificar influências de Hopper em filmes e fotografias, e na pesquisa em busca da imagem do filme vi que não fui o único a fazer essa mesma correspondência visual, mas tenho uma ou duas palavras sobre esse quadro cuja reprodução tenho na parede acima da minha escrivaninha.

Automat, Edward Hopper

Por mais fria, melancólica e inerte que a obra se mostre, com aquele fundo de escuridão que parece querer engolir toda a realidade (ou será o contrário? é daquele fundo misterioso que emerge a vida em primeiro plano?), são os toques cálidos que emprestam um hálito de vida insuspeito à composição: a expectativa de um olhar que pode se levantar a qualquer momento; o gesto delicado da mão desnuda (aliás, a luva que poderá ser esquecida remete de volta ao filme), cuja temperatura contrasta com a frieza glacial da mesa; a rima visual entre as lâmpadas, o chapéu e o arranjo de flores; e, sobretudo, as pernas - são elas que dinamizam e vitalizam a obra, com suas linhas graciosamente inclinadas sugerindo uma resposta espontânea à inércia, ao tédio e ao isolamento, com sua exposição epidérmica e clara revelando o que ficaria oculto sob a mesa, com sua ousadia desnuda diante do ambiente gélido. Experimento ocultar as pernas com a ponta de um dedo: automaticamente tudo parece irremediavelmente desesperançado.

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