01 dezembro 2025

Uma ou duas frases de “PÁRADAIS”, de Fernanda Melchor

[Publicado originalmente em 14/09/2025 em blog desativado]

“Páradais”, publicado originalmente em 2021, trad. Heloisa Jahn, ed. Mundaréu, 2022.

Linden Frederick

“A única coisa que se ouvia eram os zumbidos agônicos de bilhões de insetos e a cortina ensurdecedora da chuva, envolvendo-os.” (pág. 68)

Nascida em 1982, a mexicana Fernanda Melchor é a mais jovem ficcionista da minha estante. Páradais é feito quase inteiramente de longos e vertiginosos períodos, como um “caudal irrefreável, fétido e cativante”, embora o que mais chame a atenção seja a naturalidade com que emergem as perspectivas tacanhas e ressentidas dos personagens, sobretudo do universo masculino, em contraposição ao meio natural – o paraíso perdido, cuja contrafação é o condomínio de luxo – que, por mais degradado que seja, permite o surgimento de alguma poesia, ainda que bruta, agônica, feroz.

Antonio Barahona


“Entrava pela cozinha para não fazer barulho e se despia em silêncio, para em seguida se estender sobre o tecido áspero da esteira, no meio da sala escura, insuportavelmente abafada por causa do sol que incidia em cheio o dia todo sobre o telhado de metal, e fechava os olhos e cobria o rosto com um braço e pensava no rio escuro sob a ponte, no caudal irrefreável, fétido e cativante, e na brisa fresca que trazia consigo o humilde e sutil perfume das ilhas flutuantes de lírios, e de repente a perturbação decorrente do porre – o chão oscilando por causa da bebida – se transformava no suave vaivém do rio cantando por baixo de seu corpo, na torrente sempre cambiante, sempre desmemoriada das águas escuras descendo para o mar no bote que o avô e ele teriam podido construir se o velho não tivesse morrido antes, uma embarcação modesta e estreita, mas suficientemente espaçosa para que Polo pudesse se deitar dentro dela e olhar a passagem do céu entre dosséis de galhos e madressilvas, o clamor de milhares de grilos negros e os chiados melodiosos dos pernilongos fornicando e devorando-se uns aos outros afogados pela voz peremptória do rio, por seu canto frio, infatigável, mais sonoro à noite que em qualquer outra hora do dia, ou pelo menos era isso que o avô lhe contava quando os dois pescavam de madrugada embaixo da ponte, as botas de borracha afundadas até o tornozelo na lama espessa crivada de cacos de vidro, ossos pontiagudos, latas enferrujadas, olhar fixo na linha oblíqua cravada no centro do espelho fosco que era a água do remanso àquela hora da manhã; cinza e prateada no centro, de um verde intenso nas margens onde a vegetação invadia tudo, impiedosa, asfixiando-se a si mesma numa orgia de tentáculos escaladores e apertadas redes de cipós e espinhos e flores que transformavam as árvores jovens em múmias verdes salpicadas de trombetas e campânulas azuis, principalmente no início do mês de junho, quando irrompia a temporada de chuvas com aguaceiros isolados e repentinos que não faziam mais que reforçar o calorão da tarde e incentivar o crescimento do matagal desesperador que parecia brotar de todos os lados: matas e lianas e heras de talos lenhosos que de repente emergiam, verdes e farfalhantes, na orla dos caminhos ou no centro mesmo dos orgulhosos jardins de Páradais, fruto dos esporos clandestinos que conseguiam abrir caminho por entre as lâminas bem cuidadas do gramado inglês de seus relvados, e que de um dia para o outro abriam suas folhas primorosas, mas rústicas e sem charme, que Polo estava encarregado de remover a golpes de facão, porque nem a podadeira asmática do condomínio nem a roçadeira de fio davam conta daqueles matos bastardos que invadiam as sebes e os canteiros centrais, investindo contra as begônias e os hibiscos.” (pág. 55-57)

Amy Bennett

Joe Francis Dowden

a capa chinfrim

Nenhum comentário:

Postar um comentário