01 dezembro 2025

Notas de leitura – “O ESTRANGEIRO”, de Albert Camus

[Publicado originalmente em 14/10/2025 em blog desativado]

“L’étranger”, publicado originalmente em 1942. Trad. Valerie Rumjanek, ed. Record, ano da edição não identificado. Lido em 2009, relido em 2025.

Valentine Panici

“- Se andarmos devagar – disse ela – arriscamo-nos a uma insolação. Mas se andarmos depressa demais, transpiramos, e, na igreja, apanhamos um resfriado.

“Tinha razão. Não havia saída.” (pág. 22)

1) A fala da enfermeira, que será relembrada pelo protagonista muito depois, num momento existencial crítico, talvez seja a chave do coração do livro, ao dar uma expressão concreta às aporias da existência. Por mais que se busque alguma forma de equilíbrio, este desejo é sempre precário diante da força implacável dos contrastes.

Como bem observou Vargas Llosa no seu comentário sobre o livro (em A verdade das mentiras), O Estrangeiro é ambíguo e se presta a diferentes perspectivas acerca do caráter do seu herói, cabendo a cada leitor construir o seu próprio julgamento; em última análise, desafiando-nos com o dilema: o que é menos pior? Andar devagar ou depressa? A insolação ou o resfriado? Adaptar-se à ficção da sociedade ou manter-se fiel ao seu próprio personagem íntimo? E assim por diante.

cena do filme “Valsa com Bashir”, dirigido por Ari Folman


* * *

“Era o mesmo brilho vermelho. Na areia, o mar ofegava com toda a respiração rápida e sufocada de suas pequenas ondas. Eu caminhava lentamente para os rochedos e sentia a testa inchar, sob o sol. Todo este calor me apertava, opondo-se a meus passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto, trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar sobre o sol e essa embriaguez opaca que ele despejava sobre mim. A cada espada de luz que jorrava da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um caco de vidro, meus maxilares se crispavam. Andei durante muito tempo.

“Via, de longe, a pequena massa sombria do rochedo, envolto em uma auréola ofuscante pela luz e pela névoa do mar. Pensava na nascente fresca atrás do rochedo. Tinha vontade de reencontrar o murmúrio de sua água, vontade de fugir do sol, do esforço e do choro de mulher, enfim, vontade de reencontrar a sombra e seu repouso. Mas, quando cheguei mais perto, vi que o árabe de Raymond tinha voltado.

“Estava só. Descansava de costas, as mãos debaixo da nuca, a cabeça nas sombras do rochedo, todo o corpo ao sol. Seu macacão azul fumegava ao calor. Fiquei um pouco surpreso. Para mim, era um caso encerrado, e viera para cá sem pensar nisso. Logo que me viu, ergueu-se um pouco, e meteu a mão no bolso. Eu, naturalmente, agarrei o revólver de Raymond, dentro do paletó. Então, o árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava bastante longe dele, a uns 10 metros de distância. Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas, na maioria das vezes, a sua imagem dançava diante de meus olhos, no ar inflamado. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso, mais estagnado do que ao meio-dia. Eram o mesmo sol e a mesma luz, sobre a mesma areia, que se prolongavam até aqui. Havia já duas horas que o dia não progredia, duas horas que lançara âncora num oceano de metal fervilhante. No horizonte, passou um pequeno vapor, distingui sua mancha negra com o canto do olho, pois não deixara de fitar o árabe.

“Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas, atrás de mim, comprimia-se toda uma praia vibrante de sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. Esperei. A ardência do sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumularem nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe, e, como então, doía-me sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa desta queimadura, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei um passo, um só passo à frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao sol. A luz brilhou no aço e era como uma longa lâmina fulgurante que me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso. Meus olhos ficaram cegos, por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi, então, que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho, ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então, atirei quatro vezes ainda num corpo inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.” (pág. 61-63)

2) Poucas vezes o clímax de uma narrativa foi tão bem situado e explorado. Estamos exatamente na metade do livro, e, talvez, prestes a nos cansarmos da sua prosa seca e econômica – que se justifica pelo temperamento do protagonista. E eis que, neste encerramento da primeira parte do romance, Camus deixa bem evidente que sabe, quando necessário, desenvolver um estilo mais descritivo, envolvente, impressionista, enervantemente poético. O desabrochar dessa torrente estilística vem marcar o ponto de inflexão do drama de Mersault. E se o sol massacrante, onipresente, opressivo, inclemente, parece o índice da presença de um Deus com as mesmas propriedades, ou de um sistema de sentido totalizante e totalitário, a “vontade de reencontrar a sombra e seu repouso” não apenas aponta para o árabe sem nome como a sombra que Mersault carrega consigo, como também traduz o destino irônico de quem enfim encontrará uma sombra permanente na prisão e uma condenação ao repouso na sentença de morte.

É interessante como o segundo parágrafo faz pensar quase numa miragem, uma visão que surge com uma aura de salvação, expressão de uma sede metafísica – para terminar na muito concreta presença de um outro que é hostil e incompreensível, espécie de guardião daquele oásis proibido.

E que achado é esta frase, talvez a mais verdadeira e íntima desse personagem elusivo que é Mersault: “Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”. Proust tem razão: os verdadeiros paraísos são os que perdemos.

Gordon Hunt


* * *

“Ao sair do Palácio da Justiça para entrar no carro, reconheci por um instante o cheiro e a cor da tarde de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei, um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que me ocorria ficar contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já distendido, os últimos pássaros na praça, o grito dos vendedores de sanduíches, o lamento dos bondes nas pronunciadas curvas da cidade e este rumor do céu antes de a noite descer sobre o porto, tudo isto recompunha, para mim, um itinerário de cego, que eu conhecia bem antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que me aguardava era sempre um sono leve e sem sonhos. E, no entanto, alguma coisa mudara, pois, com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela que reencontrei. Como se os caminhos familiares traçados nos céus de verão pudessem conduzir tanto às prisões, como aos sonos inocentes.” (pág. 99)

3) Por um instante, a consciência do que seja a liberdade. Mais cedo há outro trecho magnífico, quando Mersault descobre que o melhor que pode fazer para passar o tempo na prisão é reconstituir com a memória cada palmo do quarto da sua casa, com suas variadas formas, cores, texturas – um formidável lembrete do quão facilmente nos esquecemos do valor de termos tudo isso ao dispor dos nossos olhos, mãos, corpo, sentidos, consciência, da nossa liberdade, enfim. E, curioso, até mesmo neste trecho longe da praia e do sol ofuscante, o motivo do olho/cegueira se faz presente (“um itinerário de cego").

* * *

Encerro com uma sincronicidade ocorrida no último domingo: interrompi a leitura de O Estrangeiro para dar uma caminhada no Parque Marinha, onde vi (e ouvi) um vendedor ambulante de sorvete com a peculiar corneta, e pensei que era a primeira vez em muitos meses que via um sorveteiro, sinal do verão que se aproxima. Voltei pra casa, retomei a leitura, e me deparei com o seguinte na página 106: “lembro-me apenas de que (…) eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes."

capa da edição


Notas de leitura – “A LITERATURA E OS DEUSES”, de Roberto Calasso

[Publicado originalmente em 23/09/2025 em blog desativado]

“La letteratura e gli dèi”, reunião de oito conferências ministradas pelo autor em 2000, trad. Jônatas Batista Neto, ed. Companhia das Letras, 2004.


“Acreditávamos viver num mundo sem névoa e desencantado, avaliável e verificável. Ao contrário, encontramo-nos num mundo onde tudo voltou a ser ‘fábula’. Como poderemos nos orientar? A que fábula vamos nos abandonar se já sabemos que a fábula vizinha tem condições de submergi-la? Essa é a paralisia, a peculiar incerteza dos tempos novos, uma paralisia que todos, desde aquele momento, experimentamos. Nietzsche apresenta-a como o ordálio pelo qual agora temos de passar: a condenação – ou a escolha – a atravessar um mundo totalmente espectral, onde sem dúvida é verdade que ‘tantos novos deuses são ainda possíveis‘ e o passo se prepara para uma nova dança, para ‘uma eterna fuga e busca de muitos deuses, um feliz contradizer-se, voltar a entender, voltar a pertencer a muitas entidades‘. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso é envolvido por uma sutil e incontrolável irrisão, tornando a situação passageira, fugidia, em outras palavras: uma paródia.” (pág. 55-56)

“Procedimentos como o que acabamos de descrever pressupõem que toda criação – e, em particular, qualquer forma literária, de qualquer nível – seja envolvida no manto tóxico da paródia. Nada é mais o que afirma ser. Tudo já é uma citação no momento em que aparece. Esse evento enigmático e perturbador, do qual poucos, até então, pareciam dar-se conta, pode ser visto como uma manifestação do fato de que o mundo inteiro, como Nietzsche logo iria anunciar, estava voltando a transformar-se em fábula. Mas agora a fábula é um turbilhão indiferente, onde os simulacros se revezam como uma poeira igualitária. ‘Lá onde não há deuses, reinam os fantasmas‘, vaticinara Novalis. E era possível acrescentar: deuses e fantasmas se alternarão no palco, com direitos idênticos. Não há mais um poderio teológico capaz de governá-los e de ordená-los. Quem se arriscará, então, a entrar em contato com eles, a coordená-los? Uma potência ulterior, até então mantida em perene minoria, e usada para o serviço do corpo social, mas que, nesse momento, ameaça desancorar-se de tudo e navegar, solitária e soberana, como uma nave que acolhe todos os simulacros e vaga, no oceano da mente, pelo puro prazer do jogo e do gesto: a literatura. Que, nessa sua mutação, poderá, também, ser definida como literatura absoluta.” (pág. 62)

1) Troque-se ‘fábula’ por ‘narrativa’ e estaremos diante de uma definição ainda mais reconhecível nos dias de hoje. Penso que aí está expressada boa parte da angústia que movia um David Foster Wallace, pra citar um exemplo de uma geração de autores muito conscientes de todo o pós-tudo, que levou à paródia como estratégia de sobrevivência num mundo totalmente espectral. Penso na IA como consumação da paródia, como paródia infinita, como a espécie mais insidiosa de fantasma – nos restando, quem sabe?, a improvável esperança de que “o puro prazer do jogo e do gesto” vai tornar a literatura ainda mais agudamente absoluta.

* * *

“Há um sentimento muito forte e muito antigo que raramente é identificado e mencionado: a angústia decorrente da ausência de ídolos. Se o olhar não tem uma imagem sobre a qual repousar, se lhe falta uma mediação entre o fantasma mental e aquilo que tem existência concreta, um desânimo sutil nos invade. É essa a atmosfera dominante do primeiro sonho de que temos notícia, e que foi registrado por uma mulher, Adduduri, funcionária do palácio de Mari, na Mesopotâmia, numa carta cunhada em tabuinhas de argila, há mais de 3 mil anos: ‘No meu sonho, eu entrara no templo da deusa Bêlit-ekallim mas a estátua de Bêlit-ekallim não se encontrava lá! E nem as estátuas das outras divindades que, normalmente, a circundam. Diante de tal espetáculo, pus-me a chorar por longo tempo’. O primeiro de todos os sonhos trata de um templo vazio, como o aposento de Mallarmé. Talvez as estátuas tivessem sofrido uma deportação, como acontecia, às vezes, naqueles tempos, com certas populações. A ausência vem antes da presença: esse é o regime que governa a existência das imagens. E isso permite compreender por que a literatura, rapidamente, reencontrou e restaurou os ídolos fugitivos: ela é a guardiã de todos os lugares frequentados por fantasmas.” (pág. 86)

2) A metáfora se aplica a toda a literatura de ficção, por definição, mas eventualmente também o sentido denotativo, do qual o espectro do Rei Hamlet talvez seja o grande patrono. No meio do caminho entre a metáfora e o sentido literal, entre o aposento vazio e o encontro com a imagem, entre a solidão e o reconhecimento, guardo comigo três adoradas imagens de ausência-presença, das mais queridas que a guardiã dos lugares frequentados por fantasmas já me proporcionou:

a) Uma parada imprevista no apartamento ora desocupado da irmã faz Buddy Glass se deparar com um recado, deixado escrito no espelho do banheiro, ao irmão Seymour, que se ausentou do próprio casamento. (Pra cima com a viga, moçada! ou Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira ou Erguei bem alto a viga, carpinteiros, de J.D. Salinger). (Aliás, Seymour Glass talvez seja o grande ídolo/fantasma da literatura do século XX, cuja mitologia familiar é alimentada por cartas, diários, telefonemas, entre outras formas de assombração – já escrevi um pouco sobre isso aqui).

b) Dia após dia, Faustine contempla o pôr-do-sol e se mantém totalmente indiferente às tentativas de aproximação do narrador, até que ele descubra como eternizar-se na fantasmagoria da realidade. (A invenção de Morel, de A. Bioy Casares)

c) Um sujeito introvertido vaga pelos numerosos aposentos de um palacete durante um baile, em busca de alguma privacidade, até que, num quarto totalmente às escuras, de repente recebe um beijo de uma dama oculta que decerto aguardava outro, e que fugirá, incógnita, devolvendo-o a uma renovada solidão. (O Beijo, conto de Tchékhov)

A mensagem escrita no espelho. O encanto por algo que não passa de engenhosa ilusão. O vestígio de calor humano que dura só um instante e permanece para sempre sem explicação. São três imagens riquíssimas do que é a literatura de ficção.

E são três exemplos de como o “mundo totalmente espectral” (citação 1) da realidade contemporânea poderá encontrar caminhos insuspeitos naquele outro mundo que sempre se assumiu como espectral, ilusório, metafórico – vazio e pleno.

* * *

“Como reconhecer, de outra forma, a poesia – e o seu desvio em relação ao que já existe? Algo ocorre, algo que Coomaraswamy definiu, um dia, como ‘o abalo estético’. A sua natureza não muda – quer se trate do aparecimento de um deus ou de uma sequência de palavras. É a isso que a poesia induz: ela faz ver o que, de outra forma, não se veria, por meio daquilo que, antes, jamais se ouviu.

“Mas o que tinham em mente esses escritores que mencionei, quando diziam, quando pensavam a respeito de algo: isso é Literatura? Alérgicos a qualquer pertença, sócios honorários (como Groucho Marx) do clube daqueles que jamais se inscreveriam numa agremiação que os aceitasse como membros, eles aludiam, com essa palavra, à única paisagem na qual sentiam-se vivos: uma espécie de realidade segunda, que se escancara por trás das fissuras daquela onde foram harmonizadas, coletivamente, as convenções que fazem avançar a máquina do mundo. Que tais fissuras existam já é um postulado metafísico – e nem todos tinham vontade de estudar textos de filosofia. Mas, de fato, operavam assim, como se a literatura fosse uma espécie de metafísica natural, irreprimível, que se baseia em cadeias não de conceitos mas sim de entidades heteróclitas – fragmentos de imagens, assonâncias, ritmos, gestos, formas de todo gênero. E esta última era, talvez, a palavra decisiva: forma. Repetida por séculos, pelos motivos mais variados e sob as mais diversas espécies, ainda hoje parece ser o fundo por trás de qualquer outro fundo, quando se fala de literatura. Fundo fugidio, além de tudo, e incapaz, por natureza, de traduzir-se em enunciados. De forma, é possível se falar, de modo convincente, apenas por meio de outras formas. Não existe nenhuma linguagem superposta às formas, e que possa explicá-las, bem como torná-las funcionais. Assim como isso não existe, também, com relação ao mito.” (pág. 125)

3) Não costumo dar atenção a polêmicas – a verdade é que, confesso, o nome de Aurora Bernardini não me diz nada, e sequer li os autores que ela criticou, assim como não li a tal entrevista, portanto tampouco sei o contexto -, mas aqui e ali vi reações e provocações repercutindo suas recentes declarações sobre o conceito de literatura, de estilo, de forma e de conteúdo, e este trecho do Calasso conversa com essas questões. Ele assume a perspectiva dos escritores, mas penso que o mesmo se aplica ao leitor – pelo menos ao leitor exigente, atento e dedicado, que, ao ler, está escrevendo junto com o autor, e que não tem nada de melhor a fazer na vida, pois na literatura encontra a “única paisagem na qual sentiam-se vivos: uma espécie de realidade segunda, que se escancara por trás das fissuras daquela onde foram harmonizadas, coletivamente, as convenções que fazem avançar a máquina do mundo”. O que é literatura? Está lá na citação 2: “é a guardiã de todos os lugares frequentados por fantasmas” – e será tanto melhor quanto mais souber fazê-lo.

Detalhe da capa, com a obra “A educação de Maria de Médici” (1622-5), de Peter Paul Rubens. Por que, dos sete personagens retratados, apenas uma das Graças nos olha? Não será ela a verdadeira razão de ser do quadro?


Uma ou duas frases de “PÁRADAIS”, de Fernanda Melchor

[Publicado originalmente em 14/09/2025 em blog desativado]

“Páradais”, publicado originalmente em 2021, trad. Heloisa Jahn, ed. Mundaréu, 2022.

Linden Frederick

“A única coisa que se ouvia eram os zumbidos agônicos de bilhões de insetos e a cortina ensurdecedora da chuva, envolvendo-os.” (pág. 68)

Nascida em 1982, a mexicana Fernanda Melchor é a mais jovem ficcionista da minha estante. Páradais é feito quase inteiramente de longos e vertiginosos períodos, como um “caudal irrefreável, fétido e cativante”, embora o que mais chame a atenção seja a naturalidade com que emergem as perspectivas tacanhas e ressentidas dos personagens, sobretudo do universo masculino, em contraposição ao meio natural – o paraíso perdido, cuja contrafação é o condomínio de luxo – que, por mais degradado que seja, permite o surgimento de alguma poesia, ainda que bruta, agônica, feroz.

Antonio Barahona


“Entrava pela cozinha para não fazer barulho e se despia em silêncio, para em seguida se estender sobre o tecido áspero da esteira, no meio da sala escura, insuportavelmente abafada por causa do sol que incidia em cheio o dia todo sobre o telhado de metal, e fechava os olhos e cobria o rosto com um braço e pensava no rio escuro sob a ponte, no caudal irrefreável, fétido e cativante, e na brisa fresca que trazia consigo o humilde e sutil perfume das ilhas flutuantes de lírios, e de repente a perturbação decorrente do porre – o chão oscilando por causa da bebida – se transformava no suave vaivém do rio cantando por baixo de seu corpo, na torrente sempre cambiante, sempre desmemoriada das águas escuras descendo para o mar no bote que o avô e ele teriam podido construir se o velho não tivesse morrido antes, uma embarcação modesta e estreita, mas suficientemente espaçosa para que Polo pudesse se deitar dentro dela e olhar a passagem do céu entre dosséis de galhos e madressilvas, o clamor de milhares de grilos negros e os chiados melodiosos dos pernilongos fornicando e devorando-se uns aos outros afogados pela voz peremptória do rio, por seu canto frio, infatigável, mais sonoro à noite que em qualquer outra hora do dia, ou pelo menos era isso que o avô lhe contava quando os dois pescavam de madrugada embaixo da ponte, as botas de borracha afundadas até o tornozelo na lama espessa crivada de cacos de vidro, ossos pontiagudos, latas enferrujadas, olhar fixo na linha oblíqua cravada no centro do espelho fosco que era a água do remanso àquela hora da manhã; cinza e prateada no centro, de um verde intenso nas margens onde a vegetação invadia tudo, impiedosa, asfixiando-se a si mesma numa orgia de tentáculos escaladores e apertadas redes de cipós e espinhos e flores que transformavam as árvores jovens em múmias verdes salpicadas de trombetas e campânulas azuis, principalmente no início do mês de junho, quando irrompia a temporada de chuvas com aguaceiros isolados e repentinos que não faziam mais que reforçar o calorão da tarde e incentivar o crescimento do matagal desesperador que parecia brotar de todos os lados: matas e lianas e heras de talos lenhosos que de repente emergiam, verdes e farfalhantes, na orla dos caminhos ou no centro mesmo dos orgulhosos jardins de Páradais, fruto dos esporos clandestinos que conseguiam abrir caminho por entre as lâminas bem cuidadas do gramado inglês de seus relvados, e que de um dia para o outro abriam suas folhas primorosas, mas rústicas e sem charme, que Polo estava encarregado de remover a golpes de facão, porque nem a podadeira asmática do condomínio nem a roçadeira de fio davam conta daqueles matos bastardos que invadiam as sebes e os canteiros centrais, investindo contra as begônias e os hibiscos.” (pág. 55-57)

Amy Bennett

Joe Francis Dowden

a capa chinfrim

Relendo “BRILHO DA NOITE, CIDADE GRANDE”, de Jay McInerney

 [Publicado originalmente em 11/09/2025 em blog desativado]

Bright Lights, Big City“, publicado originalmente em 1984, trad. Luiz Fernando Brandão, ed. L&PM, 1986.

Adoro essa capa com a pintura do Ivan Pinheiro Machado (e o fato de eu estar postando isso num 11 de setembro é pura coincidência)

Fui acomodar o Solenoide (Cărtărescu, nascido em 1956) na estante e, como ordeno os livros de ficção por ordem de nascimento do autor, notei que logo ao lado o McInerney (1955) olhava pra mim. Resolvi reler (também porque recém li as entrevistas com o David Foster Wallace – do ótimo Um antídoto contra a solidão – em que o McInerney é citado de passagem algumas vezes).

A primeira leitura foi em 2014. Lembrei de imediato de quando comprei o exemplar no sebo Beco dos Livros, na loja da Rua da Ladeira, e de como o vendedor, que aparentava ser uns dez anos mais velho do que eu, fez um comentário espontâneo de que era uma obra muito boa e pouco conhecida. Deu pra sentir que pra ele o livro devia ter aquela marca geracional que o tornou um clássico dos anos 1980 nos EUA. O curioso é que eu não costumo vê-lo – o cara, não o livro – por aí, afora as raras idas àquele sebo e na respectiva banca da Feira do Livro, mas no dia seguinte ao início da releitura creio que o vi no supermercado. Achei uma sincronicidade promissora.

Se bem me lembro, do que mais gostei em 2014 foi a narrativa na segunda pessoa do singular e no tempo presente, algo raro em romances e novelas, mas que era a regra nos livros-jogos da série Aventuras Fantásticas, que eu tanto lia na minha pré-adolescência. Agora, por sua vez, acho que isso é do que menos gosto no livro, o que mais o impede de levantar maiores voos, talvez. O ritmo da leitura se ressente de algumas variações mais significativas de perspectiva, de foco, de sintaxe; a leitura é superfluida, até demais, e faz pensar que alguns caroços consistentes seriam bem-vindos.

Mas os méritos são muito mais numerosos e significativos. Acho que envelheceu melhor do que Psicopata Americano (1991, Bret Easton Ellis), por exemplo, que tentei reler esses tempos. E me peguei pensando, sem saber bem o porquê, no ótimo Terapia (1995), do David Lodge, embora seja britânico, e que deveria ser mais lido e lembrado.

As últimas quatro ou cinco páginas de Brilho da Noite, Cidade Grande são sublimes. E as derradeiras frases, além de certeiras, talvez sejam uma resposta à minha impressão de que o texto é fluido em demasia. Seria o caso de reiniciar a leitura, com mais vagar, dando valor às coisas simples, saboreando cada naco de frase?

* * *

Breves trechos dos parágrafos finais:

“A primeira luz da manhã delineia as torres do World Trade Center na extremidade da ilha. Você dobra na outra direção e segue para a parte alta da cidade. O calçamento de pedras da rua aparece nos lugares onde o asfalto ficou gasto. Você pensa nos tamancos dos primeiros imigrantes holandeses pisando estas mesmas pedras. Antes daquilo, nos guerreiros de Algonquin perseguindo a caça ao longo de trilhas silenciosas.

(…)

“Quando você dobra, o que restou do seu equipamento olfativo envia uma mensagem ao seu cérebro: pão fresco. Em algum lugar estão assando pão. Dá pra você sentir, mesmo com a hemorragia nasal. Você vê caminhões de padaria carregando diante de um edifício no próximo quarteirão. Observa enquanto sacos de bisnagas são carregados para fora e colocados na plataforma de carga por um homem com os antebraços tatuados. Este homem já está trabalhando para que as pessoas normais possam ter pão fresco em suas mesas pela manhã. As pessoas honradas que dormem à noite e comem ovos no desjejum. É domingo de manhã e você já não come desde… quando? Sexta à noite. À medida que se aproxima, o cheiro do pão banha você inteiro como uma chuva fina. Você inspira profundamente, enchendo os pulmões. Lágrimas afluem aos seus olhos e você sente tamanha onda de ternura e piedade que pára ao lado de um poste de luz e se agarra para não cair.

(…)

“Você se ajoelha e rasga o saco. O cheiro de pão quente o envolve. A primeira mordida entala em sua garganta e você quase se engasga. Vai ter que ir devagar. Vai ter que aprender tudo novamente.”

Denis Frémond




"COMPLÔ CONTRA A AMÉRICA", de Philip Roth

[Publicado originalmente em 29/08/2025 em blog desativado]

"The plot against America", publicado originalmente em 2004, trad. Paulo Henriques Britto, ed. Companhia das Letras, 2018.

Martin Lewis

Sinopse - A eleição presidencial de 1940, nos EUA, é vencida por Charles Lindbergh, candidato que defende a não intervenção do país na 2º Guerra Mundial, enquanto manifesta simpatia pelo nazismo e critica os americanos de origem judaica. A atmosfera de crescente antissemitismo impõe uma série de dificuldades para famílias como a dos Roth, em Newark, Nova Jersey.

* * *

Os acontecimentos da história são bem delimitados - de junho de 1940 a outubro de 1942 - e o narrador é uma versão do jovem Philip Roth, aos sete, oito, nove anos de idade. De modo quase imperceptível, porém, o narrador está num tempo presente não identificado, e às vezes revela ter uma visão retrospectiva inclusive de acontecimentos bem posteriores. Esse truque narrativo - um artifício da ficção que Roth gosta e sabe explorar - permite ao livro ter, simultaneamente, por um lado, o encanto, o espanto, a incompreensão das descobertas de uma criança diante de um terrível e sedutor mundo adulto, e, por outro, uma prosa fluida, sóbria e lúcida, desprovida daquela ingenuidade sentimentalista que frequentemente prejudica histórias conduzidas por personagens infantis.

Martin Lewis

O título original - "The plot against America" - possui uma sutileza que se perde na tradução, enfatizando o aspecto narrativo e ficcional de um dos sentidos de "plot". É justamente o jogo de espelhos entre a realidade e a ficção, implícito em toda a construção de sentido das experiências humanas, que revela as ambiguidades das narrativas que definem quem somos e o que queremos - e o uso cínico e inescrupuloso que alguns fazem disso, manipulando "verdades" e instrumentalizando pessoas. Matéria-prima e prerrogativa do escritor de ficção, a manipulação do plot narrativo é sua forma de ser leal ao leitor no complô contra a realidade.

Charles Saxon - arte de capa da The New Yorker

Os melhores momentos de Complô contra a América são aqueles em que a imaginação do jovem Philip perscruta a realidade do que não compreende, às vezes ficando aquém, outras indo além. A sua estimada coleção de selos é um emblema do esforço de converter a validade histórica em valor estético - e é significativo que seja, primeiro, conspurcada pelos horrores da História por meio de um pesadelo, e, por fim, extraviada, perdida - de modo semelhante ao que acontece com o talento como desenhista de seu irmão Sandy.

Sorte nossa que o velho Philip nos deixou uma coleção de romances que, mais do que ilustrar a America e revelar a condição humana, torna muito mais interessante nossa estadia nessa tal de realidade.

Martin Lewis

capa da edição que integra caixa com quatro romances do autor


Impressões sobre "SOLENOIDE", de Mircea Cărtărescu

 [Publicado originalmente em 05/08/2025 em blog desativado]

"Solenoid", publicado originalmente em 2015, trad. Fernando Klabin (direto do romeno), ed. Mundaréu, 2024.

Zdzisław Beksiński

Feito de devaneio, de aroma e de sombra” – foram essas as palavras que me conduziram ao longo de toda a leitura, apresentadas na epígrafe como parte da citação de um poema de Tudor Arghezi, e que melhor simbolizam o livro.

Palavras-chave (doentiamente) recorrentes:

Cor de café – absolutamente qualquer coisa, ou mesmo não-coisa, tem ou pode ter cor de café no universo de Solenoide;

Sarcopta – o ser vivo com quem o narrador mais se identifica;

Crânio – ossos de modo geral, e também o cérebro, entre outros órgãos e partes do corpo; mas o crânio tem uma proeminência tão grande que chega a ser usado como sinônimo de mente.

Lucian Freud

Solenoide é aparentado a livros e autores que são expressamente citados – O Antigo Testamento, os Evangelhos, Dostoiévski, Kafka, Borges, entre vários outros -, como também a alguns que não lembro de serem citados (Poe, Baudelaire, A Náusea), mas penso que o seu irmão dileto seja Abadon, o exterminador, do Ernesto Sabato (o argentino é citado de passagem em um momento), com seu questionamento sobre a arte do romance e sobre o destino do autor de ficção, e com suas tremendas visões apocalípticas e oníricas em paralelo ao realismo urbano – no caso de Solenoide, na decadente Bucareste soviética, “a mais melancólica cidade do mundo, invadida pelas mariposas das paredes, carcomida pelos fortes ácidos do tempo e da nostalgia”.

Na introspecção profundamente solitária que beira um desespero amargo, por um lado, como também no estranhamento diante de uma realidade indecifrável, por outro, lembra vários dos melhores autores contemporâneos. Tematicamente, faz par com Benjamín Labatut (que não incluo no time dos melhores), na exploração da fronteira entre ciência, loucura, ficção, imaginação, teorias físicas e matemáticas – embora eu considere Cartarescu superior em estilo e em imaginação. No trato do narrador com a forma do diário, com as anotações dos sonhos e com os caminhos místicos que o seduzem, ecoa O Romance Luminoso, do Mario Levrero, embora a atmosfera seja completamente distinta.

Da série de “Cárceres” de Giovanni Battista Piranesi, referenciada no livro.


Ao abarcar numa mesma perspectiva os mais diversos tipos de anomalias e estranhamentos da consciência – dos efeitos das drogas aos koans orientais, passando por doenças mentais, experiências de quase-morte, sonhos, epifanias místicas, intuições matemáticas – e reconhecê-los como aspectos da grande ficção da vida, Solenoide expõe ao leitor o tesserato da realidade em toda a sua perturbadora e opressiva liberdade. O que pode ser melhor do que perder-se aí? nesse lugar que é “ao mesmo tempo, crânio e útero”, onde se desdobra a luta diária para decifrar os sinais do destino? Na mais impressionante passagem do romance, o milagre da fecundação constitui-se numa aventura cósmica através da quarta dimensão da realidade, onde Céu e Inferno se encontram e são indistinguíveis.
Zdzisław Beksiński

Não por acaso, várias sincronicidades aconteceram durante a minha leitura. Na mais intrigante delas, eu caminhava no Parque Marinha durante uma manhã de domingo, como de costume. Passava ao lado do prédio do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos), localizado na beirada do parque, quando reparei numa cadeira de escritório, com rodízios e espaldar alto, posicionada no lado de fora do prédio, no pátio, defronte às estruturas metálicas enferrujadas e mangueiras industriais. A cadeira me pareceu tão estranha e deslocada ao ar livre, e naquele cenário com aspecto de abandono, que imediatamente pensei que bem podia ser a Bucareste de Solenoide. Minha intuição me fez cogitar tirar uma foto, mas não o fiz e segui meu passeio. À tarde, retomei a leitura e cheguei num ponto em que o narrador mencionava a rua Teiul Doamnei. Do mesmo modo como já havia feito antes em outras referências, por curiosidade, coloquei o endereço no street view do google maps – e eis que surgiu de imediato uma cadeira de escritório com rodízios e espaldar alto colocada na calçada em frente a um prédio. Me impressionei tanto, que voltei ao Marinha, à tarde, apenas para tirar aquela foto que minha intuição sugerira – mas a cadeira desaparecera. Fiquei lá, diante dos avisos nas placas: Sistema de Dosagem de Carvão Ativado / PERIGO – Dióxido de Cloro.

mais Zdzisław Beksiński, cuja atmosfera me remete a Solenoide
Zdzisław Beksiński
Zdzisław Beksiński

Stefan Bleekrode

Wayne Daniels

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